Noite chuvosa

Uma dessas recordações era a imagem dos pais. As primeiras palavras num tom aparentemente calmo que segundos depois se transformaram em insultos recíprocos, em berros brutais que o faziam encolher-se cada vez mais nos lençóis, tapando os ouvidos com as mãos, numa tentativa desesperada de encontrar algum silêncio.

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Já estava a amanhecer e não tinha conseguido pregar olho. Mas isso não era novidade, pois o ritual dessa noite que acabava de findar tinha-se repetido sistematicamente ao longo dos últimos tempos. Passava os dias numa sonolência constante, mas quando podia dormir não o conseguia, sempre com recordações angustiantes de um passado longínquo, mas ao mesmo tempo recente a metralharem-lhe a cabeça.

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Já estava a amanhecer e não tinha conseguido pregar olho. Mas isso não era novidade, pois o ritual dessa noite que acabava de findar tinha-se repetido sistematicamente ao longo dos últimos tempos. Passava os dias numa sonolência constante, mas quando podia dormir não o conseguia, sempre com recordações angustiantes de um passado longínquo, mas ao mesmo tempo recente a metralharem-lhe a cabeça.

Uma dessas recordações, das que mais desconforto e dor lhe causava, era a imagem dos pais e da relação dos pais. Lembrava-se, com uma nitidez que a passagem do tempo não tinha turvado, da primeira vez que aconteceu. A porta que se fechou violentamente, as luzes reflectidas na parede branca do corredor, o som cada vez mais pesado de passos que se arrastavam pelas escadas. As primeiras palavras num tom aparentemente calmo que segundos depois se transformaram em insultos recíprocos, em berros brutais que o faziam encolher-se cada vez mais nos lençóis, tapando os ouvidos com as mãos, numa tentativa desesperada de encontrar algum silêncio. Depois veio o dia seguinte. O ar sombrio e soturno que a casa respirava, os silêncios intermináveis, as caras confusas e introvertidas, fechadas em si mesmas, inexpressivas.

Despertou destas recordações com os primeiros sinais exteriores de um dia que tendo “acordado” há já algumas horas, só agora começava verdadeiramente. Depois de tomar o pequeno-almoço regressou ao quarto onde a luz praticamente não entrava e deitou-se novamente, fechando os olhos.

A mente humana não deixa de ser extraordinária por várias razões e uma delas é a inevitabilidade de um certo masoquismo. Ele sabia que aquele assunto, que aquelas recordações apenas o faziam sofrer, acreditava já ter pensado em tudo o que havia para pensar, mas não conseguia evitá-las, nem a elas nem à sua força destrutiva. E o pior é que não era necessário esforço algum ou qualquer acto deliberado porque tudo o que fazia, tudo o que dizia, tudo, mas mesmo tudo, parecia estar inevitavelmente envolvido por aquele assunto, por aquelas recordações que queria a todo o custo evitar. Às vezes, ultimamente com maior frequência, julgava estar cada vez mais próximo de uma cedência total à loucura e ao desnorte.

Novamente sem se dar conta do momento exacto em que tal aconteceu, lembrou-se quando a mãe ameaçou, de uma forma aparentemente decidida e resoluta, sair de casa. Lembrou-se das súplicas que lhe dirigia, do choro incontrolável com que as soluçava, da indiferença do pai. Lembrava-se melhor, pela amplitude do cinismo, da forma como tudo se passou no dia seguinte com normalidade, como se nada tivesse acontecido, como se tivesse sido tudo uma brincadeira, uma graça, um acto de recriação. 

A facilidade com que tudo regressava à podre normalidade, discussão após discussão, enfurecia-o. Julgava ser alvo de uma desconsideração atroz e jurava convictamente que, se alguma vez tivesse uma família, tudo seria diferente, nunca actuaria de forma tão leviana.

A recordação deste momento, em que pela primeira vez na sua cabeça tinha concebido a ideia de uma família sua, de filhos seus e uma mulher sua, provocou-lhe um inesperado choro convulsivo. Porque pior do que sofrer por comportamentos alheios que o tinham afectado directamente e de que maneira, era sofrer por falhanços próprios, era chegar à conclusão que não tinha estado sequer perto de cumprir a promessa mais significativa que alguma vez tinha feito. E por isso começou a massacrar-se uma vez mais por aquela noite… Recordava-a pelo tempo chuvoso e a partir daí nunca conseguiu dissociar a chuva do que acabaria por acontecer, fazendo como que uma ligação automática e involuntária.

Entrou em casa, fechando a porta furiosamente. Demorou algum tempo a dirigir-se para o quarto, quando o fez subiu pesadamente e num equilíbrio frágil os vários degraus, anunciando a sua presença através do estrondo provocado por um vaso que caíra. Chegado ao quarto, começou a tratá-la afectuosamente, mas rapidamente mudou o tom de voz quando se apercebeu do desprezo e da aspereza que caracterizavam tudo o que ela lhe dizia.

Em pouco tempo, passou da agressão verbal à agressão física e a satisfação doentia que sentia a cada pancada tratou do resto. Anos e anos de frustração acumulada, de raiva de si próprio e de ódio eternamente camuflado, tiveram mais força do que a imagem de medo e desespero do filho que correu a abraçar a mãe que já se encontrava em perda irreparável, enquanto ele, qual louco sádico, tremia sem saber se tal se devia a um certo prazer provocado pela descarga de adrenalina ou se, por outro lado, era o prenúncio dos tempos insuportáveis que se avizinhavam.

Se tivesse sido questionado sobre a sua susceptibilidade para se tornar um assassino nessa manhã, ou na manhã anterior ou em qualquer outra manhã da sua vida, teria respondido negativamente sem reservas. Contudo, podemos levar toda uma vida dedicada à razão, à ponderação, à calma, ao controlo sobre os instintos mais animalescos, mas se nos desviarmos desse caminho uma vez que seja, nada do que fica para trás importa e esse desvio passa a definir-nos para sempre.

Este texto é baseado em factos verídicos.