Quinta Alegre, onde coabitam memórias e futuros cor-de-rosa
História, romance, poesia, biografia. A Estrutura Residencial para Idosos (ERPI) Quinta Alegre, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, é um capítulo novo de uma obra onde os alicerces estão já cimentados.
“Fico feliz por saber que é aqui que vou morrer.” Quando o senhor Nuno deu os primeiros passos de explorador no novo quarto, respirou fundo e congratulou-se por voltar ao espaço familiar que é o espanto de estar vivo. Já lá moravam a dona Aldina, a dona Aida, a dona Amália, a dona Bebiana, a dona Esmeraldina, a dona Francisca, a dona Mercedes, a dona Emília, a dona Cândida, a dona Lurdes, a dona Beatriz, a dona Conceição, a dona Maria de Lurdes, a dona Ana e a dona Clotilde, conhecedoras dos cantos à casa, sem bússola, mas com o norte da irmandade a dirigir a última das idades. Desde a data de inauguração, a 7 de Fevereiro, a ERPI Quinta Alegre, projectada pela Santa Casa da Misericórdia na Charneca do Lumiar, ofereceu-lhes, em conjunto com 32 auxiliares, “um lugar adaptado, acolhedor, confortável, muito bonito, com diversos espaços para passar o tempo e usufruir da sua individualidade, mesmo que coabitando com outros residentes”.
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“Fico feliz por saber que é aqui que vou morrer.” Quando o senhor Nuno deu os primeiros passos de explorador no novo quarto, respirou fundo e congratulou-se por voltar ao espaço familiar que é o espanto de estar vivo. Já lá moravam a dona Aldina, a dona Aida, a dona Amália, a dona Bebiana, a dona Esmeraldina, a dona Francisca, a dona Mercedes, a dona Emília, a dona Cândida, a dona Lurdes, a dona Beatriz, a dona Conceição, a dona Maria de Lurdes, a dona Ana e a dona Clotilde, conhecedoras dos cantos à casa, sem bússola, mas com o norte da irmandade a dirigir a última das idades. Desde a data de inauguração, a 7 de Fevereiro, a ERPI Quinta Alegre, projectada pela Santa Casa da Misericórdia na Charneca do Lumiar, ofereceu-lhes, em conjunto com 32 auxiliares, “um lugar adaptado, acolhedor, confortável, muito bonito, com diversos espaços para passar o tempo e usufruir da sua individualidade, mesmo que coabitando com outros residentes”.
As palavras são de Tânia Gomes, assistente social de formação e directora do equipamento, confiante de que a chave da nova casa lhes possibilitou abrir novas oportunidades, quando, com mais de 65 anos, os descobridores experientes já encaravam esta etapa como a derradeira. As estreantes vieram transferidas de um centro de recolhimento da capital, encerrado por falta de condições.
Uma casa para a flor da idade
A casa nova, com paredes forradas a carinho e cuidados, passou a ser o lugar geográfico e mental das leituras da dona Francisca, de 99 anos, que, entre cochilos, volta ao imaginário que só os sonhos literários proporcionam. “No outro dia, ela estava a ler, mas um pouco ensonada. Cheguei ao pé dela e perguntei-lhe: ‘Está a ler ou está a dormir?’ Ela respondeu-me: ‘Estou a fazer as duas coisas intercaladas’”, conta a representante da Estrutura Residencial para Pessoas Idosas.
A Santa Casa, consciente de que “fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória”, como enunciou Saramago, não quis que a noite adormecesse nos olhos dos idosos, e reabilitou um Imóvel de Interesse Público, o Palácio e o jardim envolvente, e até a fachada tomou a tonalidade dos novos sonhos: cor-de-rosa. O restauro valeu à instituição o Prémio Nacional da Reabilitação Urbana de 2017 e 2018, resultante da criação de um lugar adaptado às necessidades de cada morador, humanizado e articulado com o palácio, onde se desenvolvem actividades como as sessões de leitura às quartas-feiras de manhã e jogos didácticos e de terapia ocupacional.
Construir uma vida nova para os mais velhos
Também os residentes ganharam uma nova vida, num tempo em que já há tempo para tudo, sobretudo para os “mimos e beleza”. “São colocados ao espelho e motivados a pentear o cabelo, a pintar unhas e a colocar perfume, num reforço de auto-cuidado e auto-imagem”, conta Tânia Gomes, sobre a casa onde hoje coabitam 55 pessoas. Os mimos são dirigidos a si mesmos, mas estendem-se, com a generosidade dos laços criados, aos novos (velhos) amigos: “Eu tinha-lhes dito que tínhamos de nos pôr bonitos porque haveria um concerto. Então, a dona Ricardina e a dona Emília subiram para o quarto, e, quando dei por elas, estavam a discutir que lenço usar, num episódio de uma ternura imensa. Pareceram-me duas adolescentes que iam sair à noite. ‘Não, não ponhas esse lenço. Eu empresto-te o meu.’”
Envolvidos num universo só seu, os anciãos não se fecharam sobre o mundo; pelo contrário, encerraram, neste espaço que também edificam, uma relação muito estreita com a família e com os amigos de fora, sejam quais forem as suas idades “Temos aqui uma creche ao lado e fazemos actividades com eles, como a caça ao ovo. Tanto as crianças como os idosos adoram esses dias”, assegura Tânia Gomes, explicando, ainda, que o projecto global para a Quinta Alegre foi estruturado sobre o princípio da vivência intergeracional e da mobilidade.
“Pensada para ser um lar diferente dos outros”, a Quinta Alegre é também acolchoada de cultura e revestida de partilha. Os CD e os livros são mobília da casa, mas há sempre quem prefira os concertos ao vivo de quem sabe ouvir e contar histórias com música dentro. Por isso, António Guerlixa, fadista e poeta, canta e faz quadras para todos: “À sexta-feira à tarde, dia das actividades, toda a gente vem ouvir os fados dele.”
Animadores, assistentes sociais e enfermeiros querem que a residência oferecida pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa seja, todos os dias, uma construção de pedra e cal, com capacidade para receber mais pessoas, mais memória, mais vida, até porque ainda há datas para celebrar em conjunto, como o aniversário da mais velha residente. “Queremos fazer à dona Francisca a grande festa dos 100; para cada algarismo, um bolo. Já nos estamos a preparar para a ocasião”, remata Tânia Gomes, com o coração vestido de festa.