Cegonhas nidificam num “condomínio privado” à beira de auto-estrada

Torres de alta tensão passaram a ser o lugar preferido para a fixação de colónias de cegonhas. A REN contou 34 ninhos numa única estrutura transformada em “maternidade”.

Foto
DANIEL ROCHA

Faça chuva ou faça sol – e o início do Verão tem sido pródigo em imprevistos meteorológicos – no “condomínio privado” instalado mesmo à beira da A-6, que liga Marateca à povoação fronteiriça do Caia, erguido ao longo de anos pela cegonha branca (Ciconia ciconia) reina a boa vizinhança e a abundância de juvenis.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Faça chuva ou faça sol – e o início do Verão tem sido pródigo em imprevistos meteorológicos – no “condomínio privado” instalado mesmo à beira da A-6, que liga Marateca à povoação fronteiriça do Caia, erguido ao longo de anos pela cegonha branca (Ciconia ciconia) reina a boa vizinhança e a abundância de juvenis.

Poucos ficarão indiferentes à quantidade de ninhos construídos na sólida estrutura metálica de uma linha de muito alta tensão para instalar o que pode ser comparado a uma “maternidade”, com 17 ou 18 “berçários” quase todos repletos de juvenis. Há automobilistas que reduzem a velocidade para obter uma “bela foto” de tantos ninhos, encavalitados uns por de cima dos outros.

A colónia de cegonha branca observada pelo PÚBLICO na Marateca, no troço da A-6, a cerca de 15 quilómetros de Setúbal, não é caso raro, nem aquele que apresenta maior número de ninhos numa única estrutura de suporte de linhas eléctricas. No centro do país, técnicos da Rede Eléctrica Nacional (REN) contaram, em 2016, 34 ninhos numa única estrutura de apoio à linha de muito alta tensão entre a Batalha-Paraimo.

Esta convivência pacífica entre aves de grande porte e tecnologia está reflectida nos números. Na informação divulgada pela REN sobre o tema, é referido que em 2015 havia 2.600 ninhos instalados em postes eléctricos, o que “corresponderá a 25% da população nacional de cegonhas”. Por detrás deste crescimento “está uma combinação de dois factores”, assinala a empresa responsável pela gestão do Sistema Eléctrico Nacional: “A população de cegonhas tem vindo a crescer nas últimas três décadas, ao mesmo tempo que se expande a malha de linhas eléctricas”. Fazendo a comparação: em 1993, a rede sob a sua gestão tinha 5870 quilómetros de linhas, mas em 2017, os cabos eléctricos de 150kV, 220 kV e 400 kV já totalizavam 8907 quilómetros com quase 15.000 estruturas de apoio (sobretudo postes).

Também as alterações climáticas, que fizeram com que o sul do país começasse a ter condições idênticas ao norte de África, associadas às culturas de sequeiro e arrozais que ali existem, provocaram um acentuado aumento de cegonhas a nidificar em postes por estes “constituírem um local seguro para instalarem o ninho e criarem os juvenis”, salienta a REN.

E percebe-se porquê: Uma torre de muito alta tensão, por onde passam cabos de 400.000 volts, é um local livre de predadores e os cerca de 35 metros de altura proporcionam uma visão generosa de toda a envolvente.

Só que a instalação de colónias de cegonhas, neste tipo de estruturas, tem custos. O aumento da rede eléctrica de alta tensão (AT) e muito alta tensão (MAT) pelo país levou à disseminou a colocação de torres metálicas que vieram a ter impacto sobre a biodiversidade, nomeadamente alterações na estrutura do habitat. Os apoios de linhas eléctricas passaram a ser usados pelas aves como estrutura de poiso, ponto estratégico de caça, dormitório e para nidificarem. Numa amostra que técnicos da REN realizaram em 2016 a quase 3000 ninhos ocupados, 62% encontravam-se instalados em postes de electricidade, potenciando um crescendo de aves mortas por electrocussão, fenómeno que veio a revelar-se uma das principais ameaças à conservação de um grande número de espécies de aves e não apenas da cegonha branca. A maioria dos incidentes ocorre durante a construção dos ninhos com paus e quando os materiais transportados entram em contacto com os cabos e estruturas das linhas. A acumulação de dejectos lançados pelas cegonhas nos suportes isoladores dos cabos que se encontram por baixo ou quando os juvenis ensaiam os primeiros voos, é outras das causas mais frequentes que provocam a electrocussão das aves e muitas vezes os cortes de energia.

A região sul do país é onde se regista a maioria dos casos de mortes de aves dada a elevada proporção de cegonhas-brancas que constroem ninhos em postes de electricidade. A colaboração das empresas de transporte e distribuição de energia eléctrica tem sido determinante para a redução de mortes de aves.

Há cerca de duas décadas que a REN tem vindo a adoptar medidas para minorar o risco de falhas eléctricas provocadas por cegonhas. Até 2015 transferiu 2600 ninhos para plataformas de nidificação e colocou 6000 inibidores de poiso (ventoinhas) no topo das torres metálicas. Em 2018 instalou 70 plataformas, 597 dispositivos dissuasores de poiso e transferiu 311 ninhos, registando-se uma redução significativa da taxa de incidentes e maior segurança na manutenção das colónias de cegonha branca, que assim pode instalar as suas “maternidades” em locais estratégicos onde a disponibilidade de alimento travou a necessidade de migrar.