Humor em tempos de paz

Ricardo Araújo Pereira é um óptimo humorista, alguém inspirado pelos deuses da comédia. Mas há que ter cuidado na escrita do guião, para não confundir humor com carnaval. Fora isto, tudo bem.

De repente (já faz uns aninhos), a comunicação social promoveu uma série de comediantes, preenchendo um vazio deixado por humoristas clássicos, de que Herman José ainda é reminiscência incontornável. Há para todos os gostos: infelizmente, em muitos casos, de uma pobreza confrangedora. Ser humorista implica delicadeza, inspiração, conhecimento, humildade e uma sobredose de inteligência, sobretudo emocional. O riso, alguém o disse, é uma força cósmica que tudo e todos move.

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De repente (já faz uns aninhos), a comunicação social promoveu uma série de comediantes, preenchendo um vazio deixado por humoristas clássicos, de que Herman José ainda é reminiscência incontornável. Há para todos os gostos: infelizmente, em muitos casos, de uma pobreza confrangedora. Ser humorista implica delicadeza, inspiração, conhecimento, humildade e uma sobredose de inteligência, sobretudo emocional. O riso, alguém o disse, é uma força cósmica que tudo e todos move.

Em tempos de folguedo, haverá quem não resista a jogar as cartas todas do baralho e se procure exceder – porque o humor, entenda-se, sobrevive num formato de pacotilha, seguindo as leis competitivas do mercado. Os comediantes, sejam eles quais forem, procurarão inevitavelmente anular a concorrência, mesmo que entendam a urgência de manter uma certa unanimidade quanto à preservação da sua estranha estirpe profissional. De alguma forma, convém-lhes um proteccionismo corporativista de classe, ainda que reivindiquem o seu estatuto marginal.

Acontece que o humor perdeu, em Portugal, a marginalidade: ele tem tempo de antena, é convidado para debates, pulula em inúmeros talk-shows, gravita em torno dos grandes circuitos televisivos e radiofónicos. É um humor oficializado na democracia dos mass media, ao serviço dos grandes grupos de difusão de informação e entretenimento, e não já um grito de subversão. De alguma forma, a indignação que dele emana não deixa de ser refém de uma inevitável previsibilidade – todos sabemos para o que estamos (“silêncio, vamos rir”). O humor, no caso de Ricardo Araújo Pereira, nasce mesmo no centro da legitimidade do espaço da democracia mais mediática. Mas não deixa de ter o mérito de ser altamente sofisticado, servido por bons meios técnicos, pronto a servir, à la carte, para um riso que já não é chavão, mas, é necessário dizê-lo, não deixa de ser um riso amestrado (quando aquilo que o riso deve ser, na sua essência, se prende com o efeito de surpresa). Rimos de quê? Do poder, do rei humilhado, do desconcerto do mundo (daquele que Rabelais dizia “às avessas”?). E há limites ao humor?

Em tempos (dei conta dela no início dos anos 1990), numa entrevista imperdível, John Cleese, o comediante do mítico grupo inglês a que as recentes gerações de comediantes nacionais foram roubar os esquemas, os efeitos e o estilo, dizia que o humor tem limites. Que não é possível rir de tudo. Talvez não seja necessário enumerar factos que produzem uma gravitas tal que tudo exclui: o holocausto (há comédias sobre o assunto, mas nunca é a matriz essencial que se caustica), certa intimidade de natureza radical, alguma espiritualidade, para a qual o riso é um acessório ridículo. Cleese chegou a implicar aí elementos de natureza sexual, invocando o facto de o riso ser, em certos contextos, uma grosseria fútil. Naturalmente, a sociedade mudou, o humor também e o riso acompanhou os tempos, face às forças inibidoras – geralmente, factores tidos num plano hierático e conservador. Actualmente, poder-se-ia dizer, o riso parece poder estar em todo o lado. Mas essa banalização torna-o fácil, infértil e estulto. E nada há de mais constrangedor do que um humorista a forçar o humor – é a tragédia de um homem ridículo.

Ricardo Araújo Pereira é um óptimo humorista, alguém inspirado pelos deuses da comédia. O mundo seria muito mais triste sem ele. A aparência de um profissional e executivo do riso, porém, como agora de si constrói o estilizado retrato acabado, no seu novo programa televisivo, embota-lhe a alma – sugere que o humor começa e acaba na sua pessoa. E a desfaçatez com que caustica indivíduos, na fragilidade dos seus depoimentos, em comissões parlamentares de inquérito da ARtv, confere a parte do seu trabalho uma boa dose de espectáculo grotesco, escusado e de mau-gosto, em que o humor sai diminuído e ferido de morte. Qual é a gente que não sabe estar? A visada, a que visa, ou a que, assistindo, ressuscita o riso medieval do escárnio? Antigamente, em tempos de ditadura, o humor poderia considerar-se um exercício de coragem. Agora, há que ter coragem para assumir a liberdade da liberdade. Há que ter cuidado na escrita do guião, para não confundir humor com carnaval. Fora isto, tudo bem.