O cometa Pintasilgo e o frade de pés descalços

Houve um cometa – ou um caleidoscópio – na política portuguesa, um encontro internacional que trouxe a Fafe a voz das vítimas da guerra da Síria ou das violações de direitos humanos no mundo e um frade, nomeado embaixador, que subiu a um palco com os pés descalços. Foi a quarta edição do Terra Justa – Encontro Internacional de Causas e Valores da Humanidade, que decorreu em Fafe desde quarta-feira.

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A história começou no século XIX: o Visconde de Moreira de Rei, deputado das Cortes originário de Fafe, teria chegado atrasado a uma sessão parlamentar. Um colega, marquês, chamou-lhe “cão tinhoso”. O fafense queixou-se e o marquês desafiou-o para um duelo. O visconde escolheu as armas, preferindo um varapau, em vez de espadas ou pistolas. Especialista no seu uso, o fafense venceu facilmente, aclamado com gritos de “viva a justiça de Fafe”.

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A história começou no século XIX: o Visconde de Moreira de Rei, deputado das Cortes originário de Fafe, teria chegado atrasado a uma sessão parlamentar. Um colega, marquês, chamou-lhe “cão tinhoso”. O fafense queixou-se e o marquês desafiou-o para um duelo. O visconde escolheu as armas, preferindo um varapau, em vez de espadas ou pistolas. Especialista no seu uso, o fafense venceu facilmente, aclamado com gritos de “viva a justiça de Fafe”.

Hoje, na cidade, um monumento diante do tribunal, evoca, desde 1981, o episódio. Mas não é a justiça popular que o Terra Justa – Encontro Internacional de Causas e Valores da Humanidade pretende celebrar, já no século XXI:  “Parte-se da ideia da ‘justiça de Fafe’ para chegar ao apego ao sentido da justiça como sentimento de humanidade”, diz o presidente da câmara, Raul Cunha, 61 anos, médico de profissão.

“Terra Justa diz respeito à pessoa humana, não como abstracção”, mas como ligação “às pessoas concretas”, disse anteontem à noite o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, numa mensagem vídeo enviada para a quarta edição do encontro. Nesse dia, a homenageada era Maria de Lourdes Pintasilgo, única mulher em Portugal, até hoje, que foi primeira-ministra (em 1979) e a primeira a candidatar-se a Presidente da República (1986).

Se estivesse viva, Lourdes Pintasilgo teria gostado de ver a assembleia de jovens munícipes que, nessa tarde, decorreu no salão nobre do município. Ela que, como também disse o PR, “mobilizou os jovens e amplos sectores sociais” em torno de tantas causas. Tradição iniciada há 18 anos, ela pretende “estimular a participação dos mais novos na vida pública”, diz José Ribeiro, presidente da câmara (PS) entre 1998 e 2013 e iniciador da ideia.

Actual presidente da assembleia municipal, eleito pelo movimento Fafe Sempre, Ribeiro moderou a meia centena de estudantes de várias escolas. Transportes escolares, bolsas de estudo, ambiente, divisões políticas, toxicodependência, igualdade de oportunidades, informática e rede de internet nas escolas, oferta desportiva e cultural, obras públicas, tudo passou pelas cerca de 40 perguntas.

Os jovens a fazer perguntas

Realizada sempre poucos dias antes do 25 de Abril, a assembleia quer incutir nos jovens o gosto pela participação política ou em iniciativas como o Terra Justa ou as comemorações da instauração da democracia, referiu ainda José Ribeiro. “Tem sentido educar para a participação, por isso os desafiamos a serem vigilantes dos políticos”, acrescenta.

Ana Teresa, 13 anos, perguntou ao presidente da câmara porque não se plantam mais árvores perto do colégio onde estuda. Raul Cunha explicou as limitações do sítio e disse que, desde o início do ano, já se plantaram mais de 1500 árvores no concelho. A jovem ficou “convencida”. É importante, diz, que os políticos mostrem “cumplicidade com os cidadãos” e valoriza iniciativas como o Terra Justa, em que já participou.

Bárbara Pereira, 15 anos no dia 25, é aluna da Escola Básica Carlos Teixeira. O telhado de sua casa foi destruído, há tempos, por uma tempestade. A mãe não pode trabalhar, o pai recebe o salário mínimo e tiveram ajuda para reparar o telhado. Por isso, Bárbara estranha que a tia, que vive sozinha e também só recebe o salário mínimo, não possa igualmente ter apoio do Estado para pagar a casa. “Devia haver mais distribuição da riqueza”, diz.

O dia da assembleia foi escolhido propositadamente para coincidir com a homenagem a Pintasilgo, diz o autarca Raul Cunha. No segundo mandato como presidente da câmara (independente pelo PS), Cunha encara a ideia do seu antecessor como positiva: “Os jovens têm capacidade de interpelar, de acreditar no futuro. E fazem-no com um sentimento de alegria e confiança.”

Raul Cunha admite, entretanto, que o Terra Justa não tem mobilizado os fafenses como gostaria: “Há pouca afluência. Precisamos de mobilizar mais as escolas e instituições locais, vincar a ausência de disputa partidária em torno do encontro e fazer um esforço redobrado para que colectividades e população se apropriem da iniciativa como sua e não apenas do executivo camarário.”

Pintasilgo, cometa e caleidoscópio

Na mensagem vídeo, o Presidente Marcelo referiu-se à importância dos valores éticos, para sublinhar: “Se há personalidade que norteou a vida pela preocupação ética, ela foi Lourdes Pintasilgo”. Fundadora do ramo português do movimento católico de mulheres Graal, tendo-se destacado no desempenho de vários cargos internacionais, Pintasilgo “cumulava um conjunto excepcional de qualidades: a inteligência, o brilho, a cultura, a capacidade de doação, o sentido do serviço, a noção do Estado e uma visão indissociável da sua fé, que a colocava sempre num caminho de salvação com os outros e pelos outros”, acrescentou. “Foi militante da vida. Dela não se poderá dizer que cultivou a vidinha, no sentido que Alexandre O’Neil lhe atribuía: a vida pacata, a vida acomodada, a vida aburguesada, a vida sem sentido nem causa”.

Pelo contrário: ela foi um “caleidoscópio” que revelava uma “insatisfação e desinstalação permanente”, dizia, na homenagem de sexta à noite, a sua companheira no Graal e antiga directora-geral da Educação (1996-99) Teresa Vasconcelos. Pintasilgo manifestava ainda uma grande “alegria, sentido de humor, paixão e convicção”. E, sempre, uma enorme “capacidade de escuta – fosse do Papa, de um governante ou de uma pessoa simples”. E era uma utópica, como tantas vezes era acusada depreciativamente, mas “no sentido de ter sempre diante de si um horizonte de transformação da realidade”.

Ela foi “um cometa que deixou rasto”, acrescentou Luís Moita, professor universitário que integrou a comissão política da candidatura de Pintasilgo. Para ela, a liberdade não existe, se não existem as “condições de liberdade”, como não se cansava de repetir. E a democracia não se esgota no voto a cada quatro anos, antes deve levar os cidadãos a participar o mais possível nas decisões que lhes dizem respeito. Por isso, depois de chefiar o Governo, ela animou o Movimento para o Aprofundamento da Democracia: “O exercício do poder, para ela, só fazia sentido articulado com movimentos sociais, ecologistas, feministas, de defesa dos direitos humanos e contra a militarização das sociedades”. E acrescentou: “Tinha uma crença basilar de confiança nas pessoas”, à luz de três facetas: “experiência cristã, internacionalização e intervenção política”.

A voz cantante e a sedução dos jovens oficiais

Além de uma exposição de rua – o Caminho das Causas – e de mostras temáticas no arquivo municipal, o Terra Justa cunhou já outra marca identitária: as conversas de café. Nos quatro dias do encontro, vários cafés do centro da cidade acolhem tertúlias. Do mais clássico Arcada ao Café com Letras, que inclui papelaria e quiosque, passando pelo Shake, onde se podem comprar conservas tradicionais e bebidas, ou ao mais jovem South Africa, todos eles se enchem para ouvir pessoas ou representantes das entidades homenageadas ou outros convidados.

Numa das conversas, no Arcada, o jornalista Fernando Alves, da TSF, notava o pormenor: “Maria de Lourdes Pintasilgo tinha uma voz cantante, que transportava muita pergunta e muita sede. Ela foi uma extra-terrestre, estranha aos aparelhos partidários, que não perdoaram a ousadia da sua independência. A falta de máquina tramou-a.”

O “capitão de Abril” Rodrigo Sousa e Castro, que dirigiu a campanha presidencial, contou, na homenagem de sexta, que a própria se recusava a atacar, nos debates televisivos da campanha, os pontos fracos dos adversários – Mário Soares, Freitas do Amaral e Salgado Zenha: “Eu jamais me meterei por esses caminhos”, dizia ela.

Houve outra revelação, sobre a sedução que Pintasilgo exerceu nos jovens oficiais do Conselho da Revolução – órgão por onde passavam, então, várias decisões políticas: “O Presidente Eanes tinha de convocar eleições e nomear um primeiro-ministro, sob nossa indicação.” Apesar de a maior parte dos elementos do CR serem “conservadores, oriundos de meios rurais e machistas”, Pintasilgo exercia uma tal sedução junto dos mais jovens – a maior parte deles agrupados em torno de Melo Antunes – que estes conseguiram que fosse ela a escolhida – depois ratificada pelo Presidente Eanes.

“A Igreja não percebeu a originalidade que Pintasilgo transportava”, disse o jornalista Manuel Vilas Boas, que também acompanhou a campanha da antiga primeira-ministra. E perguntou: “Para quando uma homenagem verdadeiramente nacional na casa da democracia?”

Ao lado, a deputada e ex-secretária de Estado Catarina Marcelino, sem responder directamente ao “quando”, defendeu que isso também deveria acontecer. “Lourdes Pintasilgo merece ser conhecida por aquilo que foi como mulher, pela sua capacidade de acreditar num mundo mais justo.”

Antes, numa conversa de café sobre mulheres e poder, a ex-presidente da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género afirmara que Pintasilgo era uma das suas maiores “inspirações”. Tinha a “capacidade de juntar pessoas,  de as mobilizar para que acontecessem coisas, tinha o sonho do cuidar e do cuidado”, acrescentou à noite, na homenagem. E somou um desejo: que a noção de cuidado venha a ser incluída entre os direitos humanos fundamentais.

Também companheira de Pintasilgo em vários grupos católicos, a economista Manuela Silva destacou que, para Maria de Lourdes, “ser cristão não era um dado adquirido”. Para ela, cada crente deveria deixar-se interpelar em permanência pela sua fé, acrescentou. Uma atitude que vinha também do facto de ela “ler muito, conversar muito e fundamentar muito bem todas as suas intervenções”, como recordava Margarida Amélia Santos, presidente da Fundação Cuidar o Futuro (FCF), instituída por Maria de Lourdes Pintasilgo – e que recebeu a distinção alusiva à homenageada.   

O nome Cuidar o Futuro veio do relatório que resultou do trabalho da Comissão Independente População e Qualidade de Vida (1992-97), presidida por Pintasilgo. O texto, disponível na página da FCF, condensa uma parte substancial do seu pensamento e forma de agir: nele se fala dos direitos das mulheres, dos problemas ambientais e ecológicos, da relação destes com o desenvolvimento económico e a distribuição da riqueza, da qualidade da democracia, dos critérios para o desenvolvimento sustentável, dos cuidados de saúde e da educação. O cuidado é o novo conceito político de que o mundo precisa, escrevia ela, para que a política seja “uma saudável interdependência entre todos os seres humanos, da escala local à escala mundial”.

Quinta-feira à noite, depois de dois dias dedicados ao trabalho dos Capacetes Brancos da Síria e da Human Rights Watch, frei Fernando Ventura foi nomeado “embaixador da Terra Justa”. Chamado a subir ao palco, o franciscano Fernando descalçou-se. E, referindo-se à vítimas de injustiças, guerras e vidas desfeitas, disse: “Estou aqui descalço, para não pisar os sonhos.” serviço especial para o PÚBLICO