Uma freira dentro de mim

A culpa da euforia pasteleira do país é das freiras. E essa panca açucareira alastrou-se a toda a população portuguesa. Todos temos uma freira dentro de nós, que não nos larga e nos empurra para as pastelarias. Ela suspira-nos ao ouvido: “Que mal tem um pastelinho de nata? Que mal tem um jesuíta?”

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Rui Gaudêncio

Só se ouve falar de comida saudável e ronhonhó, de não abusar dos açúcares, mas as pastelarias transpiram saúde. Só a Padaria Portuguesa já deve ter aberto umas quatro sucursais no Catujal.

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Só se ouve falar de comida saudável e ronhonhó, de não abusar dos açúcares, mas as pastelarias transpiram saúde. Só a Padaria Portuguesa já deve ter aberto umas quatro sucursais no Catujal.

 

E eu acho que a culpa da euforia pasteleira, que varre o país de há muito a esta parte, é das freiras, que tiveram a bela ideia de massificar os doces ao longo de séculos. Porquê? Porque não tinham mais nada para fazer. O passatempo delas era converter toda a energia sexual reprimida em pastéis de Tentúgal. E essa panca açucareira alastrou-se aos poucos a toda a população portuguesa. De tal maneira, que acho que se infiltrou nos genes e neste momento todos temos uma freira dentro de nós. Uma freira que não nos larga e nos empurra para as pastelarias. Ela suspira-nos ao ouvido: “Que mal tem um pastelinho de nata? Que mal tem um jesuíta?”

 

Eu digo-te que mal tem um jesuíta, sacarina irmã. O mal é que o meu metabolismo desistiu de mim. Até há bem pouco tempo trucidava tudo o que lhe impingia, com uma paciência maternal de betoneira. Mas agora que atingiu a meia-idade fartou-se. Está velho e cansado. Vira-se para mim e diz-me: “Se queres comer doces estás por tua conta”. Deixou-me à minha mercê e à mercê das pastelarias. O que é muito perigoso. Tem tudo para correr mal.

 

Mesmo que eu queira dar uma de saudável numa pastelaria não é fácil. Para encontrar uma sandes tenho de me esforçar. Até que as vejo, apertadas, num cantinho. E muitas vezes até as sandes pingam gordura, da de omelete à de carne assada. Mas espera, há esperança, têm alface. Aquelas folhas de alface em que percebemos que houve um esmero, houve todo um cuidado em seleccionar as folhas mais podres à face da Terra. Com um castanhinho que desponta aqui e ali, escolhido com amor. Como um anúncio do Pingo Doce, com aquela voz quente no altifalante: “Seleccionámos as folhas de alface mais podres para si”.

 

É por isso que defendo a criminalização das pastelarias. Isso ou a interrupção voluntária das mesmas, não sei. Porque as pastelarias são obscenas. São antros de tentação. Abaixo as pastelarias! Por outro lado, é bom saber que há tanta obscenidade por aí. Que não somos assim tão puritanos. As pastelarias são um grito de liberdade. Vivam as pastelarias! É uma relação amor-ódio que eu tenho. O meu medo é que este grito de liberdade se transforme num grito de obesidade.

 

Porque não tarda fico gordo e careca, o pacote perfeito. Por enquanto, posso não parecer obeso. Mas quando comecei a perder cabelo também não parecia careca. Se me saiu na rifa uma alopecia galopante, segundo sentenciou o doutor, quem me diz que não sofro também de obesidade galopante? Rai’s partam as freiras, mais a sua febre boleira ancestral! Às vezes só me apetece esganá-las. Sim, porque aquelas fofas e incansáveis sorores eram verdadeiras máquinas de fazer bolos, segundo comprovo no livro Doçaria dos Conventos de Portugal de Alfredo Saramago e Manuel Fialho. Aquilo eram doces para todos os gostos: alfinetes de Santa Clara, morcelas doces de S. Bernardo, pitos de Santa Luzia, bolo de Santo Alberto, bolo de Santo Agostinho, bolo de Santa Escolástica, bolo de Santa Madre que o Pariu. Aposto que tiveram de inventar mais santos só para as freiras fazerem mais bolos. A certa altura os conventos eram autênticas indústrias pasteleiras, de fazer inveja à Dan Cake. Com sucursais por todo o continente e ilhas. Era em Fiães e em Tibães, era em Belém e em Santarém, era em Elvas e em Sandelgas, era em todo o lado. Aquelas chaminés carburavam mais do que a refinaria da Petrogal. Só que a cheirar a bolos.

 

Se calhar, nos casos mais graves, naqueles dias em que sei que a mínima ingestão de bolos se vai traduzir automaticamente em enchimento do pneu corporal, precisava de um padre à porta da pastelaria, para me perguntar: “Renuncias a um pastel de nata?”, “Renuncias a um croissant com doce de ovos?”, tal como perguntam se as pessoas renunciam a Satanás nos baptizados. Só que renunciar a Satanás é fácil, mas a um croissant com doce de ovos, isso sim, é que é uma provação.

 

Seja. Se querem abrir mais quatro pastelarias na minha esquina ou no Catujal, não me importo. Ninguém tem culpa do meu abandono metabólico. Nem me importo de ter uma freira dentro de mim. Até gosto de freiras. Sempre me trataram bem e simpatizo com pinguins encapuçados. A única coisa que não me apetecia era transformar-me num abade de Priscos.