A “vida normal” dos Cottim, uma família com a voz nas mãos

A comunicação é fervorosa na casa silenciosa dos Cottim. Mãe, pai e dois filhos são surdos. Mas têm a voz nas mãos graças à língua gestual portuguesa. Vinte anos depois de a Constituição reconhecer a língua materna deles, as barreiras persistem, apesar dos avanços. A vida de quem mora num universo sem som — e a aprendizagem por fazer dos ouvintes

Foto
Manuel Roberto

Nos intervalos das aulas, olhava-a com o seu ar mais galante enquanto ela, interessada noutro colega da escola, o ignorava. Mas ele insistia, como se houvesse um “íman” entre os dois. Foi preciso algum tempo e muita paciência para conquistar algum espaço. Trocaram olhares, algumas palavras, mais tarde perderam-se em horas e horas de conversa. Tornaram-se próximos. Ele poupava a semanada para lhe pagar o bilhetes do cinema, uma ida ao café. Escrevia-lhe cartas de amor. Ataram namoro durante sete anos. Depois casaram-se. Tiveram dois filhos. E já lá vão uns 40 anos.

“É uma vida normal, não é?”

Maria Cecília Dias é surda. Mário Rui Cottim também. Mas a história deles não será muito diferente de qualquer outra história de amor. “Os ouvintes e surdos são exactamente iguais, só nos distingue a língua”, diz Maria Cecília: “Somos uma família como as outras. Só que somos muito felizes.”

Sentados no sofá, os Cottim aprontam-se para a entrevista. Cláudia Braga, intérprete de língua gestual portuguesa (LGP) que vai fazer a ponte entre o P3 e a família, pega no comando da televisão, avisa que vai desligar para o som não interferir na conversa. “Com som ou sem som, para nós é igual”, responde Mário Cottim a arrancar gargalhadas.

Foto
“Os ouvintes e surdos são exactamente iguais, só nos distingue a língua” Manuel Roberto

O humor tem as portas abertas neste apartamento em Rio Tinto, Gondomar. Pais e filhos são surdos, integram uma comunidade linguística e cultural diferente, mas querem deixar bem claro que surdez não é sinónimo de infelicidade — e só choca com inclusão e rima com preconceito porque o mundo ainda não girou o suficiente. Há uma diferença abismal entre a infância dos pais Mário e Maria Cecília e a dos filhos, Joana e Ricardo Cottim, 31 e 28 anos. E, se tudo correr como eles desejam, haverá um gigante fosso para a geração dos filhos que um dia virão.

A LGP, cujo dia nacional se celebra nesta quarta-feira, dia 15, foi incluída na Constituição em 1997. Em Portugal, estima a Associação Portuguesa de Surdos, existem cerca de 120 mil pessoas com algum grau de perda auditiva. Muito mudou na vida delas nos últimos vinte anos — mas outro tanto há por fazer.

"Nada para nós sem nós"

Joana tem ideias muito claras sobre a comunidade da qual faz parte — sobre os erros e virtudes das decisões que têm sido tomadas. E recusa deixá-las nas mãos dos outros: “Como diz a Ana Sofia Antunes, [Secretária de Estado para a Inclusão das Pessoas com Deficiência], ‘nada para nós sem nós’”, sublinha. É muito simples: “Um ouvinte nunca vai sentir como uma pessoa surda. Por isso, é importante ouvir-nos, trabalhar connosco”.

Era criança e já adorava acompanhar o pai nas idas à Associação de Surdos do Porto (ASP), cuja direcção integrava. Sentia-se bem no mundo dos gestos e cedo aderiu e participou no departamento jovem, sendo responsável pela organização de acampamentos, promoção de actividades culturais, celebração de aniversários. Aos 20 anos tornou-se a mais jovem vogal de sempre da Federação Portuguesa das Associações de Surdos (FPAS). “Aprendi muito sobre direitos, como proteger a comunidade e a língua, quais as barreiras, a luta pela acessibilidade. Tudo.”

Foto
Ricardo Cottim e a irmã Joana Manuel Roberto

Foi ao adquirir novos conhecimentos que, depois de completar um curso de LGP para formadores na ASP, percebeu a possibilidade do ensino superior: “Os meus pais não tinham ido para a faculdade, nunca ninguém me falou disso. Pensava que não era possível um surdo fazê-lo.” Na Universidade do Porto conheceu obstáculos até então desconhecidos neste contexto. Mas não desistiu. Com outros surdos, bateu-se pelo direito a ter um intérprete em todas as aulas. E, “em 2007, conseguiu-se esse estatuto.” Fez duas licenciaturas, um mestrado. Em 2013, fundou a Comissão Nacional de Jovens Surdos. Integrou um projecto pioneiro que levou a LGP aos palcos do Teatro Nacional de São João e promoveu visitas guiadas para surdos na Fundação de Serralves. Actualmente, é professora de LGP na Escola de Referência para a Educação Bilingue de Alunos Surdos (EREBAS) do Agrupamento de Escolas de Santa Maria da Feira.

Discriminação persiste 

“Sonho muito com o futuro. A comunidade surda precisa de mim e eu dela. Faltam muitas lutas.” Há dias, um amigo surdo de Joana foi atropelado e levado de urgência para o hospital. Ficou em estado crítico. Quando acordou, com sede, fez o gesto de água. Mas nenhum médico ou enfermeiro o compreendia. “Isto é muito grave. Vinte anos depois do reconhecimento da LGP os hospitais não têm um interprete o dia inteiro? É muito grave.”

Não é só nos hospitais. Nos bancos, no centro de emprego, no teatro ou em exposições, em vários serviços públicos. Muita coisa está por mudar — “sobretudo mentalidades”. Na segurança social e nas finanças, exemplifica Joana, os surdos têm de marcar um horário para terem atendimento com intérprete: “Um ouvinte pode ir a estes serviços a qualquer hora, num intervalo de almoço, quando tem um tempo livre. Nós não”, diz, perante o aceno do pai: “É um direito de cidadania.”

Maria Cecília nasceu surda, depois de um parto difícil onde foram usados fórceps. Mário Cottim não tem a certeza: ou nasceu já sem ouvir ou terá acontecido quando, ainda bebé, caiu da cadeirinha alta de refeições e sangrou de um ouvido. Os dois, nascidos em 1956, são filhos de pais ouvintes, como acontece na maioria dos casos.

Era uma outra realidade aquela onde eles cresceram. Por essa altura, ainda se procurava uma “normalização” dos surdos, com cirurgias, utilização de aparelhos de fonoaudiologia e o ensino da língua oral em detrimento da LGP. A escola tinha como missão primeira ensinar os alunos a falar — ainda que, sem os gestos, muitos se limitassem a repetir as palavras sem lhes entender o sentido. Eram pouco mais do que analfabetos funcionais.

Foto
Na casa dos Cottim todos estão empregados, mas o desemprego é um problema na comunidade surda Manuel Roberto

Ao vê-la perdida na escola onde a professora pouco a entendia, os pais de Maria Cecília deprimiram. A única palavra que conseguia dizer era “pai”. A dada altura, ao ouvirem falar do Araújo Porto, um colégio para surdos, decidiram visitá-lo. “Os alunos eram todos surdos, todos. Fiquei pateta a olhar para aquilo. Eram só meninas”, recorda Maria Cecília. Chorou muitas vezes ao ser deixada ali, achava “estranho” aquele cenário. Mas aos poucos foi-se habituando: aprendia a oralizar com as freiras e a gestualizar com as colegas. Um dia, teria uns oito anos, chegou a casa e disse: “mãe”. “Ela ficou em choque, chorou emocionada.”

Mário Cottim esteve também numa escola normal até à quarta classe. Depois, foi para Lisboa, onde havia um colégio para rapazes surdos. “Aprendi a oralizar, a fazer leitura labial, a escrever. Mas os gestos eram às escondidas. Usávamos uma mímica, misturada com LGP. Era confuso”, conta. Curioso, Mário Rui mergulhava em livros, ia ao cinema. “Lia as legendas e tentava compreender o contexto. Quando aparecia uma palavra difícil, apontava e depois, em casa, ia procurar ao dicionário e às enciclopédias. Perceber o contexto é o mais difícil. Mas repeti, repeti, repeti. Até conseguir algum conhecimento de português.”

A angústia dos pais surdos

Depois do casamento, Mário e Maria Cecília puseram-se a falar sobre filhos. Ambos tinham vontade de ser pais — mas a angústia era grande. Preocupava-os que eles herdassem a surdez e, em paradoxo, que fossem ouvintes com pais surdos: como iriam comunicar depois? Joana nasceu sem problemas auditivos. “Falava e falava, era muito exagerada”, sorri o pai. “Mas começámos a notar que estava a perder a audição”. Nessa altura, Ricardo já tinha nascido. E os dois irmãos tiveram varicela ao mesmo tempo. Poderá vir daí a perda de audição de Joana. A do irmão, mais tarde diagnosticado com síndrome de Asperger, seria provavelmente anterior.

Foto
Cláudia Braga é intérprete de LGP e fez a ponte entre o P3 e a família Cottim Manuel Roberto

Para Maria Cecília, não foi fácil aceitar. “Fiquei doente, emagreci imenso. Pensava no futuro, como é que eles iam crescer. Vivia angustiada”, conta. O marido, optimista, jurava-lhe que tudo ia correr bem, só tinham de lutar. Mas Maria Cecília demorou a abraçar aquela realidade. Proibia a filha de gestualizar, insistia para que falasse. “Foi um erro meu, pensava de forma errada.”

Joana Cottim olha-a de forma terna. “A culpa não é dela, era da sociedade.” Quando era pequena, Joana queria aprender LGP, mas a mãe dizia-lhe que não devia, que era feio. E então ela punha-se em frente ao espelho, escondida, a treinar. “Na rua, as pessoas ficavam a olhar com cara de parvas. Havia muito preconceito”, recorda: “Era por isso que a minha mãe me proibia”.

Não foi por muito tempo: quando Maria Cecília percebeu que era com a LGP que a filha se ia desenvolver, mudou o chip. Tornou-se mãe protectora — e defensora da língua gestual. “Se as pessoas olharem, olham... Se diziam alguma coisa por o Ricardo berrar, ficava louca. Dizia-lhes ‘o meu filho é surdo e autista, ouviram?’. Pediam logo desculpa.”

Revolta foi sempre palavra fora do dicionário de Joana. Sentia, isso sim, alguma angústia quando percebia ser mais lenta do que os amigos da escola a captar os ensinamentos da professora. Mas foi uma adaptação: “A minha avó ensinou-me sempre que tinha de me integrar, revoltar não valia de nada. Ter pais surdos talvez tenha ajudado nisso. E o meu irmão: senti sempre que tinha de o proteger”, diz enquanto lhe faz festinhas na cara.

O síndrome de Asperger dificulta a expressividade de Ricardo, “um menino muito carinhoso” e “apaixonado por poesia”. Joana sabe que não é científica a sua teoria, mas acredita nela como num resultado matemático: “A nossa comunicação, muito visual, fez com que ele tivesse menos dificuldades. Temos mais sensibilidade.” No quarto do benjamim da casa, as estantes estão pejadas de livros, banda desenhada sobretudo. Depois de terminar o 12.º ano na Escola Secundária Alexandre Herculano encontrou emprego como gestor de stock num armazém farmacêutico. Faz uma vida normal.

Literacia e emprego

Na família Cottim, todos estão empregados — o pai na área de contabilidade de uma empresa, a mãe como auxiliar de acção educativa no Centro de António Cândido. Mas esse é um cenário invulgar entre a comunidade surda, onde a baixa literacia e o desemprego são problemas aumentados. “Depois de terminarem a escola, onde são mais ou menos acompanhados, muitos ficam isolados. Não se integram! A sociedade não tem resposta para eles... 20 anos depois. Como é possível?”, lamenta Joana.

Foto
Joana nasceu ouvinte mas foi perdendo audição a partir dos três anos Manuel Roberto

Recentemente, o Bloco de Esquerda propôs no Parlamento que a LGP passasse a ser ensinada nas escolas de referência também a alunos ouvintes e que fosse criado um grupo de recrutamento de professores de LGP, que, por não terem qualquer hipótese de vinculação, vivem constantemente em situação precária.

“Há sinais de mudança”, admite Joana, feliz por também os cursos superiores de LGP estarem em crescimento e, com isso, se ter um leque de intérpretes cada vez maior. Joana Cottim tem também ensinado crianças que ouvem, em idade pré-escolar: “Penso no futuro e imagino-os a trabalhar nos mais diversos serviços públicos. Eu velhinha e eles a atenderem-me: ‘Olha, a minha professora de LGP!’ Em vez de se aprender mandarim, porque não apostar numa língua portuguesa? É o meu sonho.”

Há outros. Como o de ver a prestação social de inclusão desaparecer e ser substituída por verdadeira inclusão: “A prestação é, de certa forma, uma maneira abafar o problema. Prefiro ter acessibilidades a 100%”, argumenta. Ou os filhos que quer ter: “Quatro!”, responde perante o espanto sorridente do pai. “Já pedi à médica de família para fazer testes. Mas se for genético terei filhos na mesma. Serão felizes como eu.” Ao ouvir falar de sonhos, Mário Cottim idealiza: “O que gostava de voltar atrás no tempo... Ter 20 anos e poder fazer o curso de arquitectura”, diz algo entristecido, para logo recuperar o sorriso. “A minha vez já passou. Mas a dos meus filhos não.”

O esforço, diz Joana Cottim, está muito do lado dos ouvintes — pois são estes que são, quase sempre, analfabetos na língua gestual. Não têm de existir dois mundos separados. Como escreveu Danielle Bouvet, numa poesia que Ricardo Cottim gosta de interpretar, “o mundo que tu ouves é o mesmo mundo que eu vejo”. A diferença é que os ouvintes “são viciados no som”, os surdos não vivem sem luz. Por isso andam sempre com uma lanterna: “A nossa comunicação é através dos olhos, na escuridão não comunicamos.” Mário Rui Cottim resume numa frase: “Nós ouvimos com os olhos”. E a filha completa logo a seguir: “E a voz sai-nos das mãos.”