“Tornou-se banal dizer que é melhor ter um emprego do que não ter nenhum”

Francisco Fernandes Ferreira, da plataforma de denúncia de emprego precário Ganhem Vergonha, reuniu quatro anos de abuso num livro. Já há “mais consciência” e “discussão pública” — mas a vergonha continua.

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Francisco Fernandes Ferreira é o responsável pela plataforma de denúncia de emprego precário Ganhem Vergonha Adriano Miranda

Foi uma mistura de frustração, tédio e raiva. Francisco Fernandes Ferreira mergulhou nos anúncios de emprego pelo pior motivo possível: ele próprio estava desempregado. Em pouco tempo, já estava a “identificar padrões” de comportamento dos empregadores. A perceber que tudo era possível: anúncios de estágios não legislados, procura por falsos recibos verdes, oferta de salários inferiores ao mínimo definido por lei. Começou a compilar informação e, em 2013, inaugurou o Ganhem Vergonha, uma plataforma de denúncia de emprego ilegal ou precário baptizada com as duas palavras que mais lhe bailavam na cabeça: “Era o que me apetecia dizer a muitas pessoas”, conta Francisco, 34 anos, trabalhador na área da comunicação.

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Foi uma mistura de frustração, tédio e raiva. Francisco Fernandes Ferreira mergulhou nos anúncios de emprego pelo pior motivo possível: ele próprio estava desempregado. Em pouco tempo, já estava a “identificar padrões” de comportamento dos empregadores. A perceber que tudo era possível: anúncios de estágios não legislados, procura por falsos recibos verdes, oferta de salários inferiores ao mínimo definido por lei. Começou a compilar informação e, em 2013, inaugurou o Ganhem Vergonha, uma plataforma de denúncia de emprego ilegal ou precário baptizada com as duas palavras que mais lhe bailavam na cabeça: “Era o que me apetecia dizer a muitas pessoas”, conta Francisco, 34 anos, trabalhador na área da comunicação.

Quatro anos depois, há “mais consciência” e “discussão pública”. Mas, na prática, “continuamos muito longe do ideal”. “Tornou-se banal”, por exemplo, “dizer que é melhor ter um emprego do que não ter nenhum”.

Com uma campanha de crowdfunding, o portuense publica agora o livro com 250 páginas Trabalho Igual, Salário Diferente (14,50 euros). Há contributos de jornalistas, deputados (Rita Rato, José Soeiro e Tiago Barbosa Ribeiro), da historiadora Raquel Varela, do professor Santana Castilho, de sindicalistas, advogados e até um inspector do trabalho. E casos mediáticos: como os do grupo Menina Design ou o da Work4u, que prometia às empresas que contratavam os seus serviços estagiários à borla e à experiência durante dois dias. O livro, avisa o autor, não pretende ser uma “parede dos caloteiros”. Mas uma ajuda para a reflexão. Como se cria mudança? Dar mais poderes à Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) e legislar são passos importantes. Ter gente mais informada também.

Como é que um desempregado decide criar um blogue de denúncia de emprego precário?
Via anúncios todos os dias, enviava centenas de currículos, passava por propostas completamente absurdas e tinha muitos colegas na mesma situação. Já trabalhava havia sete ou oito anos, tinha estado em todos os regimes contratuais e conhecia bem o mercado. Mas naquela posição sentia um vazio constante, nem sequer me respondiam aos emails. Um dia, depois de uma sucessão de episódios destes, decidi compilar tudo e fazer um blogue. Foi frustração combinada com tédio. E com alguma raiva.

Portanto, tinha uma ideia da realidade mas não sabia desta dimensão...
Se calhar tinha uma percepção relativa. Sabia de várias histórias de amigos, mas de repente comecei a identificar padrões. Anúncios anónimos, com intermediários, com muita informação dúbia. Percebi que havia muitos que se repetiam. E que algo não batia certo: porque mesmo em anúncios que pareciam feitos à minha medida não tinha sequer resposta. Comecei a estar mais atento.

O nome que queria foi sempre este: Ganhem Vergonha?
Por acaso o nome inicial até era Tenham Vergonha, que se calhar era menos forte do que este. Mas já estava registado. Foi sem intenções populistas. Era o que me apetecia dizer a muitas pessoas.

Começou a recolher estes depoimentos e histórias em 2013. Em quatro anos o que mudou?
Há determinados temas que já têm mais espaço na discussão pública. Como os estágios. Há mais gente implicada a protestar, nem que seja nas redes sociais. Há mais consciência. Isto afectou muita gente. Famílias e profissionais mais ou menos jovens começaram a ver os lugares deles em risco. Agora, em termos práticos, não houve muita mudança. Continua a valer tudo nas ofertas de emprego, pode anunciar-se tudo. Houve algumas mudanças no caso dos recibos verdes. Há esta promessa de legalizar os precários do Estado, com um modelo no qual não acredito muito... Há alguns sinais. Mas na vida prática das pessoas continuamos muito longe do ideal.

A crise deu jeito a estas empresas? Ou seja, com a justificação da crise, tudo foi possível?
Claro. Dava jeito e o mais grave foi o impacto disso nos candidatos a emprego. Foram tantos anos de injecção daquela narrativa de que era preciso sacrifício para ter um emprego, trabalhar mais horas, suar a camisola, ter espírito criativo e dinâmico. Toda essa lengalenga que foi criada há décadas pelas empresas de recrutamento americano. As pessoas — sobretudo os mais novos, quem não tinha emprego ou estava a entrar no mercado — ficaram a achar que o maior peso da responsabilidade de não ter emprego cabia ao trabalhador. Tornou-se banal dizer que é melhor ter um emprego do que não ter nenhum, seja ele qual for. É uma frase que já dizia o Bill Clinton nos anos 90.

A questão da consciência é importante. Como se cria essa mudança?
É preciso elucidar quanto aos direitos laborais, tentar pensar de uma forma mais colectiva. Saber que se aceito trabalhar de borla estou a baixar o valor do trabalho nessa área. Mas também é preciso legislar. É preciso impedir isto. Vai sempre haver gente a candidatar-se à pior oferta de todas. A maior parte das publicações da Ganhem Vergonha tem comentários de gente a dizer que é tão culpado quem aceita como quem propõe. Sempre discordei disto. Vai sempre haver alguém com pouco a perder, para quem até trabalhar de borla é um bom investimento. É preciso mesmo impedir que certo tipo de vínculos existam.

Os estágios são um desses vínculos?
Sim. Os estágios deviam acabar todos nos moldes em que existem. Os curriculares admito que façam sentido, desde que sejam pagos. No início deste século eram. Devia haver pelo menos o salário mínimo. Se uma pessoa que termina o ensino obrigatório, o 12.º ano, não tem que fazer um estágio, por que é que uma pessoa que termina uma formação superior ou técnica tem de o fazer?

Diz a dada altura do livro que as universidades deviam ter um papel mais activo nesse capítulo...
Algumas universidades propõem aos seus alunos estágios não remunerados. É como se a própria universidade assumisse publicamente que a formação que dá não tem grande validade para o mercado de trabalho. Então diz aos alunos para trabalharem de borla.

Identifica vários tipos de abusos no livro. Além dos estágios, quais são os mais frequentes e preocupantes?
Os estágios são de facto os mais fortes. Até porque há uma vasta gama. Nesta lógica de vínculos precários há também os casos de falso voluntariado, associado a empresas públicas e privadas. Falo também no trabalho especulativo, uma coisa muito ligada às indústrias criativas. Simplesmente é uma forma de empresas obterem serviços de borla: põem muita gente a trabalhar e só alguns são pagos. Na área cultural e de entretenimento isto está generalizado.

Isso é ilegal ou só ilegítimo?
Não sei se há alguma coisa na lei que os impeça... Os concursos que atribuem prémios são legislados e acredito que nenhum destes esteja registado. Para além disso, há o recrutamento feito para outros fins que não a contratação. No período de crise qualquer empresa que mostrasse que estava a contratar dava um sinal de vitalidade. Havia muitas ofertas falsas. Se uma empresa quiser vender um produto destinado a enfermeiros — e nem devia estar a dizer isto — a coisa mais eficaz que pode fazer é publicar um anúncio de emprego para enfermeiros. Vai ficar com uma base de dados de enfermeiros segmentada por região, com números de telefone, com tudo... Há ofertas publicadas que têm como fim vender serviços. Depois há casos de trabalho muito qualificado, pessoas que falam quatro línguas por exemplo, pago com salário mínimo. E finalmente os falsos recibos verdes, uma praga que muita gente já aceita como se não fosse um caso. Interiorizaram como normal. E vale tudo.

Como é que se começa a combater esse “vale tudo”? Com mais fiscalização, mais legislação, mais poderes à ACT?
Dar mais meios à ACT é um bom caminho. É evidente que não tem meios suficientes. E tem pouco poder. No caso dos estágios, por exemplo, não pode actuar. Cabe ao Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) fazê-lo. Na área dos anúncios, quase todos feitos online, a ACT tem muito pouca capacidade de monitorizar e actuar. Depois há a credibilidade pública da ACT. A percepção que tenho é que a ACT, como muitos serviços do Estado, está completamente descredibilizada. À mínima referência há alguém que diz que eles avisam as empresas das visitas antecipadamente. Mas sei perfeitamente que é um serviço como todos os outros. A ACT tem de fazer um percurso de aproximação aos trabalhadores.

Na questão dos anúncios online que anunciam que vão cometer uma ilegalidade, como se devia actuar?
Há campos online em que nunca será possível monitorizar. Mas em sites privados de oferta de emprego — todos, com a excepção do IEFP — vive-se da publicidade. Quantos mais anúncios mais receitas têm. Os sites de anúncios não seguem as regras do código de trabalho nem da publicidade. Estão em zona de ninguém. Qualquer empresa ou pessoa pode publicar um anúncio, dizer que vai pagar 10 euros por 50 horas semanais. E não há problema. Impedir que estes anúncios se propaguem não garante que aquele posto não seja ocupado por alguém naquelas condições mas já é alguma coisa.

O que sugere que seja obrigatório nos anúncios?
O nome da empresa é fundamental. Se um trabalhador envia para uma empresa os seus dados, contactos e percurso académico, é legítimo que uma empresa nem sequer se identifique? As pessoas admiram-se quando recebem chamadas de operadores de telemóvel, agências de seguros... Basta pensar nos currículos que já enviaram com dados pessoais. O mesmo para as agências de trabalho temporário: do que é que elas vivem? De contactos de pessoas em busca de emprego. Quando uma empresa lhes pedir um mecânico eles têm 300 para contactar.

As empresas de trabalho temporário também deviam acabar?
Sim. Estão a roubar parte do valor do trabalho das pessoas. E se isso não fosse já condição muito grave, ainda servem de capataz das empresas. Fazem com que muitas empresas quando querem despedir nem sequer tenham o trabalho de confrontar o trabalhador directamente. Em Portugal há casos de empresas que funcionam há uma década com regimes destes. Os call center da PT, por exemplo. Tenho amigos que trabalham há anos na PT e já tiveram quatro ou cinco patrões, nenhum deles a PT.

Vamos voltar às soluções. Falou da ACT, de mais fiscalização. E mais?
Se calhar era bom que estudássemos todos um bocadinho mais, perceber por que é que hoje trabalhamos 40 horas por semana, oito por dia, perceber por que é que foram fundados os sindicatos, por que é que há licença de paternidade. Saber como se conquistaram estes direitos e perceber que as relações laborais são um acordo entre duas partes e que é preciso que os trabalhadores tenham consciência colectiva. Por exemplo, se têm conflito laboral têm de perceber que este conflito dá trabalho. Sei que muitas vezes é difícil confrontar o patrão, mas não há outra forma. Quando me contactam aconselho as pessoas muitas vezes a recolherem provas de que trabalham no local...

Que tipo de provas?
Emails trocados, tirar uma fotografia, ter pessoas de confiança no local de trabalho. Apercebo-me que há pessoas que trabalham de forma não declarada, sem qualquer vínculo, fazem entrevistas por Skype, sem se precaverem minimamente.

A publicação deste livro tardou por estarem a correr processos em tribunal. Quantos foram?
Ameaças foram muitas. Processos efectivos, só dois. Mas não chegou sequer a haver julgamento. Um deles foi arquivado. No outro chegou-se a acordo. Era um testemunho de uma pessoa que aceitou retirá-lo. Como eu era apenas o mensageiro também aceitei tirar.

Estas denúncias conseguiam criar mudança?
À medida que a plataforma foi crescendo houve uma comunidade criada. Uma diferença que senti foi na relação com as empresas denunciadas. Se no início quase todos os emails e respostas eram de insultos e ameaças de processos em tribunal, num tom muito agressivo, isso foi-se diluindo. Perceberam que aquilo tinha alguma visibilidade e por táctica começaram a falar de forma mais cordial. Houve casos de cooperação, alguns retiravam as ofertas.

O que o motivou a passar isto a livro?
Tinha um volume muito grande de conteúdos publicados e como havia padrões, um certo tipo de abuso que é repetido e que afecta muita gente, achei que era importante mostrá-los. O livro não é uma parede dos caloteiros, quem estiver à espera de ver uma lista de empresas sem vergonha não vai gostar.

E agora que o livro está publicado: o Ganhem Vergonha chega ao fim apesar de, como diz, a vergonha continuar?
Estou aberto a sugestões. Este é um projecto que, sendo bem feito, dá muito trabalho. Tem potencial para ter dez vezes as publicações que tem. Com o tempo isto tornou-se uma plataforma de pesquisa. Quem vai a entrevistas de emprego pesquisa previamente se o nome da empresa no Ganhem Vergonha. Mesmo agora que tenho pouco actividade recebo denúncias todas as semanas, às vezes todos os dias. Nunca tive fins lucrativos, mas tenho contas para pagar. Se houvesse forma de o transformar numa plataforma comunitária era óptimo. Porque, de facto, a vergonha continua.