Helena Roseta: “Ser pobre é muito mais difícil para negros”

As problemáticas dos bairros de realojamento e da segregação vistos por moradores, um geógrafo e uma deputada. "Há racismo institucional que não é assumido", diz Helena Roseta.

Foto
Laurent Mendy faz trabalho social no bairro onde mora e diz que sente terem sido abandonados MÁRIO LOPES PEREIRA

A Quinta da Fonte, em Loures, faz parte de um processo de realojamento forçado no qual as pessoas não tiveram participação. Isso criou uma “insatisfação” à partida “que não é nada favorável”. Esta é uma crítica de Helena Roseta, presidente do grupo de trabalho da Assembleia da República sobre a habitação.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

A Quinta da Fonte, em Loures, faz parte de um processo de realojamento forçado no qual as pessoas não tiveram participação. Isso criou uma “insatisfação” à partida “que não é nada favorável”. Esta é uma crítica de Helena Roseta, presidente do grupo de trabalho da Assembleia da República sobre a habitação.

O bairro juntou-se a outros para reclamar o direito à habitação formando uma caravana que vai iniciar um percurso dia 8 de Setembro e passará por várias cidades. É um exemplo de segregação na habitação, e em geral aparece misturada com “uma constelação de problemas” que se congregam “em determinadas origens geográficas e étnicas”, analisa Roseta. “Não é de propósito que as pessoas andam a acumular dificuldades, é porque têm as dificuldades que as pessoas pobres têm, acrescidas ao facto de não terem acesso porque lhes é barrada a porta por questões raciais”, diz a deputada, impulsionadora da primeira lei de bases da habitação — ao contrário do que se passa com outros direitos, como a educação e a saúde, esta era uma área sem uma lei de bases. “Ser pobre é muito mais difícil para negros do que para brancos, mas os brancos têm muita dificuldade em assumir isto.”

Para a arquitecta, o facto de nos bairros sociais e de habitação precária estarem maioritariamente afrodescendentes e ciganos mostra que há “um racismo institucional que não é assumido mas que é real”: “Quando uma situação discriminatória atinge determinada população”, sistematicamente, “não se pode tirar outra conclusão”. Ou seja, "pode não ter sido intencional, mas que lá está." 

Exemplifica também com a Câmara da Amadora (PS), cuja presidente “disse não querer mais bairros de realojamento”. “É preciso perguntar porquê. Lisboa tem 70 bairros sociais e se for preciso fazem-se mais. Mas quando um município diz isso, de forma velada está a dizer que não quer mais população de determinadas características. É aquele racismo envergonhado que há em Portugal. Ninguém diz que é racista mas depois tem comportamentos que, na prática, tem consequências discriminatórias.”

O jurista José Semedo Fernandes viveu anos no bairro de Santa Filomena, na Amadora, hoje um terreno com quase nenhumas casas, e algum lixo espalhado. Comenta sobre a forma como se despejam e realojam populações: “Quando deitaram abaixo a Aldeia da Luz por causa da barragem do Alqueva, enviaram uma equipa multidisciplinar para avaliar as relações das pessoas, a forma como estavam dispostas as casas. Porque, diziam os psicólogos, a retirada abrupta da zona onde estavam, separando a comunidade, podia trazer efeitos psicológicos nefastos. Aqui não se teve esse cuidado” – os moradores foram realojados em diferentes bairros. “Veio uma retroescavadora e foi-se arrancando a vida das pessoas como se de batatas se tratassem. É o que acontece também em outros bairros, como o 6 de Maio.”

“Ficamos com os restos”

O bairro social da Quinta da Fonte, construído em 1996, incorpora algumas das consequências da segregação que o geógrafo Jorge Malheiros enumera: quando implica isolar as populações, o contacto com tecido urbano é mais difícil, os transportes públicos têm menos frequência, o acesso aos recursos urbanos dificulta-se e os efeitos de uma mistura social que podiam ser benéficos desaparecem. “E se as populações são muito diferentes do que está à sua volta, as tensões são maiores”.

Na maior parte das vezes, a Quinta da Fonte está nas notícias pelas razões erradas: tiros, violência, rusgas. É um dos bairros de realojamento criados com pessoas de várias zonas da cidade.

Muitos dos 54 prédios já não têm elevador a funcionar. Os três andares até casa de Conceição Mendes sobem-se de escadas. Há portas dos prédios que não fecham e graffitis escritos nas paredes, muitas vezes sujas, onde as caixas dos interruptores não existem. “Os moradores têm responsabilidade, mas a câmara também. [Na autarquia] dizem que vão fazer [obras] mas não aparecem”, diz a moradora ali há quase 21 anos. "Nem uma lâmpada mudaram", queixa-se.

Quando lá chegou, em 1996, era bonito, lembra Conceição Mendes. Episódios como os que aconteceram em 2008, que resultaram em quase uma dezena de feridos e um processo contra 15 pessoas, algumas acusadas de motim, já vão longe. Em 2013 o festival o Bairro i o Mundo, dedicado ao graffiti, dinamizou a Quinta da Fonte, trouxe gente de fora, ajudou a mudar um pouco a imagem negativa.

Nas ruas juntam-se grupos de jovens a conviver. Laurent Mendy, que trabalha na área social no bairro no projecto Escolhas e ali vive há 11 anos, sente que houve um abandono. Havia um estúdio de música, muito requisitado por jovens que hoje ficam na rua sem nada que fazer: “O estúdio era uma ocupação saudável”, conta. Foi fechado há mais de cinco anos. Mesmo as actividades de Verão têm sido difíceis de concretizar, afirma. Faltam espaços verdes, parques onde as crianças possam brincar, um campo de futebol com condições.

Dentro de algumas casas a humidade e a degradação são comuns. Mas sendo propriedade da autarquia, os apartamentos não têm manutenção. “O bem que nos é dado chega em condições péssimas muitas vezes”, afirma. “Ficamos com os restos.”

Ao PÚBLICO, a Câmara Municipal diz que “a manutenção dos edifícios e equipamentos públicos “é da sua responsabilidade mas “o tratamento das zonas verdes e da limpeza urbana” cabe à Junta de Freguesia. O município candidatou-se a um Programa de Fundos Comunitários, Programa Operacional Regional - Lisboa 2020 para intervenção nos espaços comuns e requalificação dos edifícios, sendo que cerca de 2,12 milhões são do orçamento municipal, por isso “haverá um forte investimento nos próximos anos”. Prevê-se que as obras se iniciem no primeiro trimestre do próximo ano. Refere ainda que há um “Centro Comunitário, com diversos espaços recentemente remodelados e que estão permanentemente ao serviço da população”.

Continuar a ler