Na rua, todas as noites se repetem

R deixou-nos a possibilidade de contarmos o que quisermos da sua história. Ficam as coisas simples: o dia-a-dia que se repete.

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Nuno Ferreira Santos

Todas as noites se repetem. Muda para umas calças avermelhadas e uma camisola térmica – a roupa escolhida propositadamente para organizar as coisas antes de se deitar. Principalmente quando está a chover. Aí, quando os dias são mais difíceis, a limpeza também o é e R gosta de ser perfeccionista.

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Todas as noites se repetem. Muda para umas calças avermelhadas e uma camisola térmica – a roupa escolhida propositadamente para organizar as coisas antes de se deitar. Principalmente quando está a chover. Aí, quando os dias são mais difíceis, a limpeza também o é e R gosta de ser perfeccionista.

Assim está à vontade para fazer a cama e estar um pouco à conversa com os amigos.

Depois muda para o pijama. Orgulha-o. É dos poucos na rua que dorme com pijama.

É por isso que muda três vezes de roupa. Todas as noites – já lá vai um mês - se repetem.

- Também tenho lençóis, vês? Sou o único aqui que tem.

Aqui, em Santa Apolónia, nos degraus por baixo das janelas da estação. O local onde tem pernoitado, com o Sr. J e o Sr. A - eles já são senhores porque a idade o permite, mas R dispensa o prefixo. Tem 33 anos.

Para ele, era a casa do pai e da droga ou era a rua. Ao fim de dois meses em Portugal, escolheu a rua. “Se ficasse lá ficava agarrado. Não quis isso.” A sua história é bruta, dura: “É assim, é assim. Podes escrever tudo o que quiseres. A minha vida é assim, podes escrever.”

Noutros tempos teve outra amiga jornalista. Nos tempos em que andava no colégio e fazia teatro. Conta como esteve com Eunice Muñoz, em “Banqueira do Povo”, a telenovela que a RTP transmitiu na Primavera e Verão de 93. Nesses tempos, também foi músico. É bom no baixo e nas teclas e chegou a ir tocar à SIC, em 2006. Não esquece nem aquele Natal nas Prisões em que esteve em frente do teclado.

- Mas, numa altura, tens 18 anos e quando reparas já tens 30.

Desde 2007 que trabalhava em Espanha. “Um erro, uma loucura” impedem-no de lá voltar nos próximos 5 anos. Foi por isso que voltou, há três meses. Não voltava se não fosse obrigado.

Agora acorda cedo. Vai entregar currículos, dá umas voltas, e por volta das 12h, “tudo fica calmo”. Arranja alguma coisa para comer, “umas bolachas ou assim”, e que comece a tarde – uma “tarde boa” se houver alguma coisa para fazer, alguma coisa para tratar. À noite volta para a estação. Lá vão estar as carrinhas com comida quente. E aos sábados, dois de cada mês, lá vão estar também os voluntários da Conversa Amiga.

Esta é uma manhã diferente, porque é terça-feira: cá está a Joana como é costume. Foi o número de telemóvel da psicóloga da ACA que deixou, há uns dias, no hospital para que lhe marquem uma consulta.

- Pensei que número podia deixar, porque ainda não tinha telemóvel nessa altura. Achei que a Joana não se ia importar.

- Fizeste bem, fizeste bem! - Responde Joana Teixeira.

Acabou de chegar a sua vez de falar com a psicóloga:

- Diz-me coisas boas. Faz-me feliz.

Mas as notícias não são as melhores. “Aqui em Portugal, é uma burocracia incansável”, suspira. R é acompanhado por outra técnica, o que dificulta a comunicação, e o processo para obter um quarto é complexo, demorado.

Fica frustrado. Só quer um quarto e está há um mês na rua. Joana compreende, mas não pode fazer mais nada. Ele sabe: “Se todos se preocupassem como tu te preocupas comigo, já estava resolvido.” Combinam para ir tratar de renovar o cartão do cidadão e de marcar uma reunião com a técnica que acompanha o caso.

Nesta terça-feira, R leva-me a conhecer o seu cacifo. Tem-no há pouco mais de uma semana. Se ajuda? “De que maneira”. Não tem que andar com as coisas às costas, já tem outros pesos para carregar.  E pode ter tudo arrumado, como gosta de ter.

Esta manhã limpou os cacifos de toda a gente, por fora. O seu cheira a chiclete de melancia e está prestes a ser todo arrumado. O calçado fica na base do cacifo – à espera de secar da chuvada da noite anterior -, a roupa para lavar num saco ao canto e a toalha pendurada. Falta um cabide para a camisa, que ainda assim está perfeitamente engomada. Também dava jeito para a camisola. Não que se queixe. “Assim arrumado, está tudo bem”, exclama.

Na prateleira de cima fica o resto da roupa, o pijama e os lençóis. Ao lado, os produtos de higiene, um pacote de bolachas e um caderno. Gosta de escrever e de desenhar.

- Esta é a camisola com que durmo. É térmica. Posso estar só com isto e nunca tenho frio.

Pergunta se sei como a arranjou. Um dia, alguém perdeu uma mala no comboio e foi R que a encontrou. Foi entrega-la à polícia. Afinal a mala pertencia a um agente da PSP, que estava de passagem pela capital. Era um homem do Porto que lhe ofereceu um saco mais pequeno que tinha consigo. Lá dentro estavam algumas t-shirts, uns calções, uma bolsa com produtos de higiene e a camisola com que R dorme todos os dias.

O problema agora é lavar a roupa, porque a senhora que lha lavava deixou de aparecer. Há-de resolver, há problemas maiores na lista.

Por agora, tem os objectivos definidos: tratar do cartão do cidadão, abrir conta num banco, começar a trabalhar. Já tem um emprego à espera. Mas há outro impedimento: “Quero começar a trabalhar quando tiver um quarto, para puder fazer a higiene como gosto de fazer.” Não interessa que agora esteja na rua, quando começar a trabalhar tudo isso fica para trás.

- Se te ligarem do hospital, já sabes, Joana – despede-se.