Revelações, indiscrições e decência

A decência passa pela não invasão da vida privada alheia e pelo respeito das confidências que nos são feitas.

Um dia, há já bastantes anos, no exercício da minha profissão de jornalista, numa época onde me dedicava em especial à área da saúde, fui entrevistar um conhecido médico, especialista de sexologia. Era o fim do dia, o médico tinha acabado de fazer as suas consultas, estava visivelmente exausto e, mal eu fiz a primeira pergunta, em vez de responder lançou-se numa diatribe contra as doentes que lhe enchiam o consultório e que, nas suas palavras, tinham como única preocupação a excessiva brevidade do desempenho dos seus parceiros sexuais. Digo “nas suas palavras” mas as palavras do médico eram de facto mais coloridas, recorrendo, para maior vivacidade, às expressões que as próprias doentes usavam e que o horrorizavam pela sua crueza. Depois de o deixar descomprimir durante uns minutos, pude finalmente fazer as perguntas que me tinham levado ao consultório, recolher as suas respostas e saí.

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Um dia, há já bastantes anos, no exercício da minha profissão de jornalista, numa época onde me dedicava em especial à área da saúde, fui entrevistar um conhecido médico, especialista de sexologia. Era o fim do dia, o médico tinha acabado de fazer as suas consultas, estava visivelmente exausto e, mal eu fiz a primeira pergunta, em vez de responder lançou-se numa diatribe contra as doentes que lhe enchiam o consultório e que, nas suas palavras, tinham como única preocupação a excessiva brevidade do desempenho dos seus parceiros sexuais. Digo “nas suas palavras” mas as palavras do médico eram de facto mais coloridas, recorrendo, para maior vivacidade, às expressões que as próprias doentes usavam e que o horrorizavam pela sua crueza. Depois de o deixar descomprimir durante uns minutos, pude finalmente fazer as perguntas que me tinham levado ao consultório, recolher as suas respostas e saí.

Nada nas regras técnicas e éticas da minha profissão me impedia de citar extensamente as suas declarações iniciais, onde era claro não apenas o seu desdém pelos doentes mas a sua repugnância perante os problemas que eles lhe traziam. O encontro tinha sido previamente marcado numa conversa telefónica entre os dois, eu tinha-me identificado como jornalista, tinha dito que queria recolher um depoimento para um artigo que estava a escrever para um jornal, não tinha havido qualquer preâmbulo do tipo “isto só aqui entre os dois”, não tinha havido da parte dele qualquer pedido de reserva, antes, durante ou depois da entrevista. Apesar disso, não citei essas declarações que, se tivessem sido divulgadas, lhe poderiam ter trazido dissabores.

Não o fiz para o proteger – uma obrigação que não sentia e que a deontologia profissional neste caso não exigia – mas apenas porque me pareceu que, no momento em que tinha feito o seu despropositado desabafo, o meu entrevistado não tinha tido consciência de que estava frente a um jornalista com direito de citar e publicar todas as suas palavras. Um sinal disso, aliás, era o tom distinto adoptado quando entrou em “modo entrevista”.

Todos os jornalistas podem contar dezenas de episódios como este. Casos onde, devido à ignorância do papel do jornalista e às ideias erradas sobre o que é o off the record e em que casos pode ser invocado, uma fonte faz declarações a um jornalista, sabendo que ele é jornalista, mas esperando que ele não as publique. Por vezes, o jornalista publica as declarações, legitimamente (como eu o podia ter feito), e a fonte considera-se atraiçoada porque possuía uma (nesses casos injustificada) expectativa de confidencialidade.

As legítimas expectativas das fontes são, porém, sempre um factor a considerar. Se numa festa alguém faz uma confidência a uma pessoa sem saber que está a falar com um jornalista, é evidente que esse jornalista não tem o direito de divulgar essa declaração publicamente – ainda que tenha o direito de não esquecer o que lhe foi contado e possa e, em certos casos deva, usar essa informação para investigar mais profundamente a história.

Se numa festa alguém faz uma confidência a um jornalista, sabendo que está a falar a jornalista, mas o contexto da conversa não é uma conversa profissional (prévio pedido de entrevista, declaração expressa do jornalista de que está a recolher depoimentos para um trabalho jornalístico), o jornalista também não tem o direito de a publicar.

Existem regras bem definidas para os casos em que um jornalista pode e não pode, deve  e não deve publicar o que lhe contam. Há casos complicados, casos-limite onde há valores conflituantes (num local público, uma pessoa que conta algo aos berros a um amigo, pode ter uma legítima expectativa de confidencialidade?), mas em geral o que há a fazer é simples.

Isto para dizer que, mesmo os jornalistas, que têm por função social contar a toda a gente o que se passa, devem respeitar regras de lealdade e não estão autorizados a contar tudo o que ouvem. Quando consideramos a esfera da vida privada, por exemplo, os órgãos de comunicação social decentes e os jornalistas decentes são particularmente cuidadosos na sua protecção.

O estatuto editorial do Público, de 1989, por exemplo, reconhece “como seu único limite o espaço privado dos cidadãos”. Repare-se que nem sequer a lei é reconhecida como limite, porque ela pode ser injusta e iníqua, mas apenas “o espaço privado dos cidadãos”.

Mas a regra do respeito pela vida privada, que se aplica até aos jornalistas, aplica-se, naturalmente, a todos nós. A decência passa pela não invasão da vida privada alheia e  pelo respeito das confidências que nos são feitas, pela discrição, em nome da reserva da intimidade da vida privada e familiar, da protecção da liberdade alheia e da confiança necessária às relações entre as pessoas. Mas isto, claro, quando se trata de pessoas decentes, que se preocupam com o seu bom nome e o dos seus concidadãos. Os outros não têm direito ao nome.

jvmalheiros@gmail.com