Sem sol

Robert Delaunay (1885 – 1941) realizou, em 1912, uma série de 23 pinturas intitulada Janelas Simultâneas Sobre a Cidade, que dissolviam a perceção do panorama da cidade de Paris numa composição com planos geométricos de cor intensa e vibrante. As janelas, enquanto dispositivo destinado à iluminação do interior de uma arquitetura e de observação da sua exterioridade, deram um título a esta série nada ingénuo, já que não só evocavam a metáfora com que Leon Battista Alberti, na renascença, interpretara a pintura — associada à conquista do espaço perspético, por isso, um análogo da janela, que rompia em profundidade ilusória o espaço plano da parede —, como estas Janelas operavam num sentido diverso daquele, diluindo as formas iluminadas do espaço exterior na cor e esta numa relação de contrastes.

Se a janela era, antes de mais, fonte de luz, a pintura também o era; se a janela apresentava uma realidade visual, a pintura não iludiria essa realidade numa imitação, seria antes a concretização dessa realidade visual. Dizia Delaunay que “a única realidade é a luz” e esta é um composto de cores. Por isso, as suas janelas são objetivas e simultaneamente expressão pura da própria visualidade. A pintura procurava o absoluto da visão e a simultaneidade referida no título era a da imagem pictórica à da retina. Não sendo ainda completamente abstratas, estas pinturas situaram-se no seu limiar. No ano seguinte, prescindiu da própria noção de janela para estabelecer uma relação direta entre pintura e retina. Primeiro disco simultâneo foi esse passo, consistiu numa tela circular com sete bandas concêntricas de cores divididas em quartos. Hal Foster tem uma crua e precisa asserção sobre este processo em Delaunay, se as “Janelas Simultâneas Sobre a Cidade são janelas sem cortinas, quase olhos sem pálpebras: a sua cor como luz quase cega”.

Em 1930, Lászó Moholy-Nagy (1895 – 1947) construiu um mecanismo cinético que projetava formas luminosas. Designou-o como Dipositivo lumínico para um palco elétrico, ficou mais conhecido como Modulador de espaço-luz. Destinava-se a produzir efeitos luminosos para peças teatrais e performances, trabalho ao qual se dedicou nesses anos, depois de sair da Bauhaus. Consistia numa estrutura composta por diferentes superfícies de metal cromado e vidro, que, acionadas por um motor, se moviam em diferentes translações. Colocada dentro de uma caixa, era iluminada por luzes amarelas, verdes, azuis, vermelhas e brancas, que se acendiam e apagavam, deixando visível o mecanismo através de uma abertura circular na face da caixa. Quando a face oposta era removida os efeitos lumínicos eram projetados num ecrã ou no espaço envolvente.

Hoje esta estrutura é apresentada fora da caixa como uma escultura — que de facto também é, indissociável do seu efeito, — e quando iluminada funciona como um dispositivo escultórico que move geometrias de luz e sombra, produzindo relações entre espaços dinâmicos num plano virtual. Moholy-Nagy, que procurava a unidade da técnica e da arte com o entusiasmo de uma determinação histórica, atingia aqui uma síntese que lhe permitia passar do pigmento da cor à própria luz e, como afirmava, “no domínio ótico, aprendemos a trabalhar apenas com meios puramente elementares, puramente óticos”. A luz e o movimento eram agora o produto da evolução tecnológica com a da arte moderna e a manifestação da sua essencialidade.

Se Moholy-Nagy se situa na emergência da “nova cultura da luz”, como auspiciosamente designava a sua época, Dan Flavin (1933 – 1996) operou a partir das suas formas produzidas industrialmente. A partir de 1963 abandonou a pintura para trabalhar com lâmpadas fluorescentes, fazendo recurso da apropriação de objectos banais do quotidiano apresentados como objectos artísticos — que Marcel Duchamp designara como readymade —, mas dando-lhes um posicionamento espacial, que não era arbitrário e relevava de uma intervenção intencional no espaço. A famosa Diagonal of May 25 (to Constantin Brancusi), 1963, consiste numa vulgar lâmpada fluorescente amarela colocada numa parede na diagonal e tangível ao chão, o que lhe retira o valor funcional e confere um sentido composicional mínimo. Flavin encontrou na lâmpada fluorescente a revelação de uma forma básica susceptível de repetição e adição infinita, como a coluna de Brancusi.

Paradoxalmente a escultura de Flavin, ao contrário do entusiasmo de Moholy-Nagy com a depuração elementar dos meios óticos, era realizada a partir de um objecto comum e contrariamente à provocação duchampiana não desmistificava o valor da arte. A Diagonal of May 25 tirava dos seus materiais possibilidades de significação artística, estes podiam mesmo integrar questões contraditórias da arte moderna, mas não apontavam para uma finalidade redentora, por muito iluminada que a escultura fosse. Produziu nove versões desta. O trabalho de Dan Flavin e dos minimalistas, em geral, rompeu com a estética de um original. Se por isso se diferenciava dos modelos estabilizados do consumo mercantil da arte, baseado no original, a proliferação das edições das suas obras por museus, colecções e organizações empresariais, associadas a uma estetização da vida como capital simbólico ou activo, inscreveu-se no próprio processo industrial que assimilara e o seu destino tornou-se involuntariamente tangível a este.

Em Factory of the Sun, 2015, Hito Steyerl (n. 1966) apresenta um vídeo que se confunde com a apresentação de um jogo de computador num espaço semelhante a um estúdio para captura de movimento divido por linhas azuis reflectoras, formando uma grelha tridimensional. Neste trabalho, os anteriores conceitos para a luz sonhados pela modernidade — como meio artístico, transposição para o virtual ou constituição de unidades discretas — são implicados na estrutura digital do nosso presente, enquanto realidade imaterial, puramente luminosa, onde o corpo, a informação e os poderes passam a ter o seu lugar. Os fluxos digitais estão assim fundidos com os interesses económicos, as manipulações culturais, os processos de construção da realidade.

O jogo tem diversos níveis de realidade e é apresentado com ironia por Yulia, a sua programadora. O vídeo exibe continuamente bailarinos a dançar ao som de música electrónica. São designados os novos escravos do trabalho que da garagem passaram para estúdios de captura de movimento de empresas, que exploram os seus passos de dança e os transformam em impulsos luminosos, como base da realidade virtual. Sempre a dançar vão-se adicionando ao irmão de Yulia, o bailarino protagonista, muitos outros, alguns são desenhos animados de estudantes mortos em manifestações de protesto contra a supremacia dos poderes invisíveis. A luz transformou-se aqui na substância digital, esta enquanto rede define os poderes e a captura dos modos de existência, cuja dança é a frouxa resistência que alimenta o circuito.

Se em 1912 as práticas artísticas encontravam diante de si a cegueira de um sol nascente, em 2015 parecem procurar os intervalos e interrupções no fluxo digital que as produz.

Pedro Lapa é director artístico do Museu Coleção Berardo e professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (e é sob sua orientação que publicamos quinzenalmnete a série A Luz como Meio e Limite). 
Comissariou muitas exposições, entre elas Amadeo de Souza-Cardoso, James Coleman, More Works About Buildings and Food. Foi co-autor 
do primeiro catálogo raisonné realizado em Portugal, dedicado à obra de Joaquim Rodrigo. Prepara uma exposição sobre o artista canadiano Stan Douglas

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Robert Delaunay, Janelas Simultâneas Sobre a Cidade, 1912. Óleo s/ tela; 52 x 46 cm DR
László Moholy-Nagy, Dipositivo lumínico para um palco elétrico (Modulador de espaço-luz), 1930; metal, vidro, motor, madeira, lâmpadas; 151 x 70 cm DR
Dan Flavin, Diagonal of May 25 (to Constatin Brancusi), 1963. Lâmpada fluorescente; 243 x 9,5 cm DR
Hito Steyerl, Factory of the Sun, 2015 Vídeo instalação: vídeo 23 min, estúdio de captura de movimento DR