A psicose, os demónios e a minha linda filha

Uma mãe relata como a filha começou a manifestar a sua bipolaridade até ao dia em que tudo mudou de vez.

Foto

No mês passado, perdi a minha querida filha na luta contra a doença mental. Suicidou-se a poucas semanas de fazer 29 anos, atirando-se para a frente de um comboio em Baltimore.

A Natalie e eu escrevemos um livro juntas quando ela tinha 16 anos: Promise You Won’t Freak Out: A teenager tells her mother the truth about boys, booze, body piercing and other touchy topics (and Mom responds) — “Promete que não te passas: Uma adolescente conta à mãe a verdade sobre rapazes, álcool, piercings e outros temas sensíveis (e a mãe responde)”. A ideia de uma adolescente contar à mãe os seus segredos era tão atraente que aparecemos na capa do Baltimore Sun e mais duas dezenas de jornais, fomos a programas de televisão de um lado ao outro do país, incluindo aos programas da manhã, e pagaram-nos para dar conferências. A Oprah ligou-me.

No livro, usávamos um dispositivo para assinalar quando uma grande reviravolta estava prestes a acontecer: Até que… Na introdução, defini os momentos Até que… como “uma daquelas alturas críticas em que a minha alegre sensação de que tudo estava bem no mundo colidia com a prova irrefutável de que não, não estava”.

O livro foi publicado uma semana antes de a Natalie terminar o liceu e recebeu óptimas críticas. A Amazon considerou-o o melhor livro sobre parentalidade de 2004. Foi nomeado para um prémio nacional. Foi traduzido para lituano e chinês.

Até que...

Aos 22 anos, durante a segunda parte do seu último ano de faculdade, Natalie teve um surto psicótico. No prazo de poucas semanas, passou de uma jovem adulta brilhante com o mundo aos seus pés para uma paciente numa instituição psiquiátrica com cadastro criminal. Só muito mais tarde é que eu soube que esta dramática trajectória é avassaladoramente comum.

Os distúrbios psicóticos aparecem quase sempre no final da adolescência ou no início da idade adulta, com picos entre os 18 e os 25 anos, de acordo com Thomas Insel, director do Instituto Nacional de Saúde Mental. Os cientistas não sabem explicar porquê. Muitos investigadores têm-se concentrado nas anomalias na forma como se desenvolve, durante a adolescência, o cérebro das pessoas com surtos psicóticos. Outros investigam a genética, as circunstâncias pré-natais e o ambiente envolvente.

Surgiu um relativo consenso à volta do conceito de que os surtos psicóticos como os de Natalie não são, ao contrário do que possam parecer, abruptos, mas o culminar de um longo processo. De acordo com este modelo, têm origem em alterações moleculares que ocorrem no cérebro que começam uma década antes de os sintomas se manifestarem e que progridem para uma fase de psicose em último grau na qual a realidade é tomada pela ilusão, paranóia, alucinações ou outro tipo de distúrbios. Isto aponta para a possibilidade, tão tentadora quanto controversa, de as crianças poderem vir a ser analisadas segundo indicadores psicóticos, tal como acontece actualmente com outros problemas de saúde, na esperança de se conseguir reduzir o risco de psicose, tal como reduzimos o de ataques cardíacos.

Os problemas da Natalie devem ter começado no seu primeiro ano de faculdade, mas — tal como todas as famílias com quem falei sobre os seus próprios casos — eu não tinha um quadro de referências para reconhecer aquilo que na realidade eram.

Passou uma semana em que não dormia mais de quatro horas por noite e parecia ter uma energia interminável. Mas nessa altura estava a viajar no estrangeiro e mantinha-se acordada graças à cafeína. A nossa família viu isto como jet lag e não como um distúrbio psicológico. Alguns meses depois, disse que uma das suas amigas começava a sussurrar sempre que ela virava a cabeça, quando na verdade as raparigas seguiam juntas pela rua abaixo, a discutir um pouco entre si. Sem um historial de doenças mentais na família, nunca passou pela cabeça de ninguém que fossem alucinações auditivas.

Só seis meses depois — quando o sussurro da sua amiga se transformou num coro de estranhos que lhe davam ordens que levaram a detenções por crimes como invasão de propriedade privada — é que a relação se tornou aparente. Isto, mais uma vez, também é comum: a duração média de falta de tratamento da psicose nos EUA é de 70 semanas, diz Insel.

Como a maior parte das pessoas que estão no meio de uma crise psiquiátrica, Natalie argumentava que estava óptima e que “todos os outros estão loucos”. O seu estado continuou a deteriorar-se até que um agente da polícia, em reposta a mais uma chamada, a levou para as urgências de um hospital em vez de uma prisão. Depois de uma série de exames psiquiátricos e de uma audiência de tribunal, deu entrada num hospital público psiquiátrico. Recebeu tratamento intensivo por grave transtorno bipolar e psicose, até ficar estável e sem sintomas, dois meses mais tarde.

Natalie chegou bem, animada e parecida com a pessoa que era. Veio passar o Verão a minha casa e ensinou-me a gostar de tofu grelhado e a fazer ovos mexidos. Preparou as melhores saladas que comi na vida. Encheu a casa com a sua arte original, os seus amigos e o seu espírito irresistível. A doença mental não era tema. Voltou à faculdade para recomeçar o último ano. Quando partiu fiquei de estômago vazio, mas cheia de optimismo.

Até que...

Três meses depois, deixou abruptamente de tomar os medicamentos que mantinham à distância os seus surtos maníacos e as alucinações auditivas. Um dia, quando veio passar o fim-de-semana, minutos depois de ter entrado em casa o seu pensamento e comportamento fantasioso tornou evidente que os “demónios”, como eu viria a chamá-los mais tarde, tinham voltado.

A recaída da Natalie foi pior do que o seu primeiro surto: a psicose e o internamento mais prolongados, a recuperação mais difícil, a medicação mais complicada, as perspectivas de futuro menos auspiciosas. Esta segunda estadia no hospital durou dez meses, uma eternidade numa altura em que a média de internamento psiquiátrico é de cinco dias e a maioria das pessoas com psicoses nem sequer é internada. Graças a um cuidado intensivo, ela voltou a recuperar, ainda que mais lentamente, e terminou o seu bacharelato em artes plásticas.

O seu assistente psiquiátrico do hospital e vários outros funcionários percorreram 120 quilómetros para assistir à sua exposição de final de curso. Foi um triunfo para todos nós.

Mas, tal como acontece com muitas pessoas e muitas famílias e profissionais que vivem com, ou perto, de doentes psiquiátricos, o Até que... continuou. Apesar de Natalie parecer mais feliz e mais produtiva quando tomava a medicação, sentia falta da pica das paranóias ocasionais e odiava o aumento de peso que é um efeito secundário frequente dos remédios que tomava. Quando estava estável, às vezes declarava que afinal não estava doente e por isso não precisava da medicação — outra razão muito comum que as pessoas dão para deixar os medicamentos.

Mas se ela, ainda que inadvertidamente, deixasse de os tomar durante alguns dias, mesmo que estivesse em terapia ou outras formas de tratamento, os demónios regressavam e uma das primeiras coisas que lhe diziam era para deixar de tomar a medicação. A segunda era para não falar com a mãe, a outra influência mais poderosa na sua vida. De todas as vezes ela obedecia e piorava, tinha uma recaída ainda mais duradoura, a queda era mais acentuada e a recuperação mais lenta, regressando a um nível de estabilização mais baixo.

A última vez que entrou neste ciclo foi no Outono passado, quando se convenceu de que era aquela pessoa em cada quatro com distúrbios psíquicos cujos sintomas só melhoram muito tenuemente, ou não melhoram de todo, com os medicamentos. Não havia sinais aparentes de psicose, e para todos à sua volta ela parecia feliz e saudável, mas dizia que não conseguíamos ver o que estava dentro da sua cabeça.

Em Novembro, seis anos depois do primeiro surto, anunciou que, uma vez que teria alucinações de qualquer forma, iria deixar de tomar a medicação de vez. Tinha 28 anos quando deixou de tomar os antipsicóticos injectáveis e os comprimidos que ajudam a estabilizar o humor que a tinham ajudado a reconstruir a vida. E a sua mente entrou numa última, e fatal, espiral.

Natalie acreditava que o tratamento resultava e que o sistema de saúde mental tinha de ser reformado para que outras pessoas recebessem o tipo de cuidados que ela recebia quando tinha uma crise. Contou a sua história no ano passado para um documentário sobre a criminalização de pessoas com doenças mentais. Sonhava ser conselheira de quem tinha os mesmos problemas que ela. Dizia que queria ajudar os outros da mesma forma que a tinham ajudado a ela — até se convencer de que no seu caso qualquer ajuda era inútil.

Nas semanas depois da sua morte, as manifestações de simpatia e pesar de legiões de pessoas que combatem os demónios deixaram-me ciente de que a dor que sinto pela sua perda é apenas uma gota no oceano de dor criada pelas doenças psíquicas que estão por tratar. Uma mulher escreveu: “Tenho bipolaridade e nem sou capaz de contar quantas pessoas me disseram ao longo dos anos: ‘Devias ficar contente por só teres isso’, ‘podia ser pior, podias ter cancro ou outra doença terminal...’ Entristece-me que tantas pessoas não percebam que as doenças mentais, apesar de serem tratáveis, não são curáveis e podem matar.”

A minha filha viveu mais de seis anos com uma doença incurável e encheu a cabeça com demónios que literalmente a levaram à morte, e fê-lo enquanto ria, pintava, escrevia poesia, ajudava e trazia alegria a outras pessoas à sua volta. Foi a pessoa mais corajosa que eu conheci e o seu suicídio não muda isso.

“A Natalie ajudará a nossa sociedade a avançar”, escreveu-me um investigador do Johns Hopkins Hospital quando soube da sua morte. “Ela ajudou-nos a olhar para as doenças mentais com o respeito, a compaixão e a dignidade que merecem.”

Espero que sim. A Natalie teria adorado esse legado.


Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post
Doris Fuller é directora executiva do Treatment Advocacy Center, em Arlington (Virginia), que se dedica a ajudar pessoas com doenças psiquiátricas a receber tratamento