Agricultores de Odemira forçados a destruir charcos para receber ajudas comunitárias

Estão a ser investidos quase dois milhões de euros na preservação de ecossistemas frágeis e instáveis mas o Ministério da Agricultura impõe a sua reconversão em áreas agricultadas, como condição da atribuição de subsídios.

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Nalguns charcos há crustáceos com um máximo de sete centímetros, 70 pares de patas e três olhos Adriano Miranda

Na propriedade existia um charco temporário e o agricultor decidiu preservá-lo, depois de ser informado pela Associação de Beneficiários do Mira, da qual é sócio, de que se tratava de um habitat prioritário protegido por uma directiva comunitária (Anexo I da Directiva Habitats) que proibe a sua destruição.

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Na propriedade existia um charco temporário e o agricultor decidiu preservá-lo, depois de ser informado pela Associação de Beneficiários do Mira, da qual é sócio, de que se tratava de um habitat prioritário protegido por uma directiva comunitária (Anexo I da Directiva Habitats) que proibe a sua destruição.

Decorrido algum tempo, os serviços do Ministério da Agricultura informam-no de que tinha declarado uma área superior à que tinha efectivamente trabalhado. Como tinha feito uma declaração que não correspondia à verdade, por incluir o charco na área cultivada, perdia o direito à totalidade do subsídio. A menos que lavrasse a zona inundada. Para evitar o prejuízo, o agricultor meteu lá o tractor e o charco desapareceu.

A situação descrita, sem dados mais concretos, foi relatada ao PÚBLICO por Tiago Marques, professor da Universidade de Évora, durante uma das jornadas sobre Biodiversidade realizadas no âmbito do Festival Terras de Sombra, evento organizado anualmente pelo Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja.  O docente faz parte do grupo de especialistas que integra o projecto LIFE Charcos, lançado em 2013, o qual foi aprovado pela Comissão Europeia com um investimento de 1,9 milhões de euros para  preservar os charcos mediterrânicos localizados na costa sudoeste de Portugal e que estão ameaçados pela agricultura intensiva.  

O problema maior reside na “falta de coordenação” entre os ministérios do Ambiente e da Agricultura, salienta o investigador, e o resultado está na regressão generalizada destes habitats. Rita Alcazar, da Liga para a Protecção da Natureza, entidade que coordena o projecto LIFE Charcos, confirma a “incongruência” entre a “imposição de lavrar” os charcos para o agricultor poder beneficiar dos apoios directos da Política Agrícola Comum e as orientações da Directiva Habitats que classifica de “boas práticas” agrícolas não lavrar.

“O conflito existe e tem de ser resolvido”, assume Carla Lúcia, representante da Associação de Beneficiários do Mira no projecto Life Charcos, identificando outros problemas. Em primeiro lugar “importa informar os agricultores” sobre o tipo de práticas culturais que podem ser desenvolvidas para a protecção dos charcos, e, ao mesmo tempo, “compensá-los” pela manutenção de habitats tão sensíveis, observa.

Sugere ainda que seja facultado aos agricultores do perímetro de rega do Mira o mesmo tipo de compensações aplicadas em Castro Verde, onde o Programa de Desenvolvimento Regional incentiva, através de uma intervenção territorial integrada, a preservação de aves estepárias ameaçadas de extinção, apoiando investimentos não produtivos, necessários à sua salvaguarda. 

Na região de Odemira e de Vila do Bispo, subsistem cerca de uma centena de charcos com a “caracterização específica definida na Directiva Habitats” acentua Rita Alcazar, cerca de metade dos que existiam no final dos anos 90 do século passado. 

Naquela época, um número significativo de charcos foram terraplanados, drenados e outros transformados em charcas (pequenos reservatórios de água). Actualmente a sua existência continua ameaçada por critérios que tanto o Ministério da Agricultura como do Ambiente tardam em rever, apesar dos próprios agricultores assumirem que estão dispostos a preservar os charcos.

Foi neste sentido que a organização do Festival Terras sem Sombra incluiu na sua programação de eventos sobre música sacra em oito concelhos alentejanos (Almodôvar, Odemira, Sines, Grândola, Santiago do Cacém, Castro Verde, Moura e Beja) jornadas sobre a biodiversidade como a que foi realizada no último fim-de-semana em Vila Nova de Milfontes sobre os charcos mediterrânicos. Cerca de meia centena de pessoas puderam constatar a importância dos charcos mediterrânicos e os impactes negativos neles provocados por espécies infestantes como o chorão e a acácia.

Habitats prioritários
Os charcos temporários, que enchem no período das chuvas e secam no pino do Verão, são considerados pela União Europeia como um dos habitats prioritários para a conservação da natureza. O LIFE Charcos visa a preservação dos charcos existentes no Sítio de Interesse Comunitário da Costa Sudoeste da Rede Natura 2000 – que coincide, em parte, com o Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina –, nas charnecas do concelho de Odemira e no planalto de Vila do Bispo, onde estão alguns dos principais núcleos a nível nacional.

Nestas bolsas de água, cujo tamanho pode variar entre poucas dezenas de metros quadrados e um hectare, vivem crustáceos que existem desde o tempo dos dinossauros e podem dar pistas sobre como sobreviver a extremos climáticos. Uma das espécies dependentes dos charcos é o Triops vicentinus, também chamado de camarão-girino, que apurou ao longo de milhões de anos estratégias e técnicas de reprodução para sobreviver à falta de água. Este crustáceo endémico do sudeste alentejano, considerado um dos animais mais antigos do mundo ainda vivos, cresce até sete centímetros (sem contar com a cauda), tem 70 pares de patas e três olhos. Os seus ovos podem permanecer no solo seco dos charcos durante anos, eclodindo apenas quando caem as primeiras chuvas.