Mudou a regra dos braço-de-ferro

Custe o que custar só poderia ser utilizado para salvar as vidas, não para informar que elas não valem isso

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Mencionarmos a pouca importância dada pelas políticas à condição humana é quase um chavão, no entanto, por estes dias, a visibilidade desse assunto tem sido tão límpida como uma cascata de água.

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Mencionarmos a pouca importância dada pelas políticas à condição humana é quase um chavão, no entanto, por estes dias, a visibilidade desse assunto tem sido tão límpida como uma cascata de água.

Os últimos dias ficaram inevitavelmente marcados pelo debate sobre a compra, ou não, do medicamento que poderá garantir a cura de milhares de doentes com Hepatite C. É uma doença silenciosa, conforme referia um dos doentes, o que invadiu a comissão parlamentar da saúde. Não sermos invadidos por um sentimento de revolta é quase impensável, quando ouvimos alguém pedir para não morrer, como se do lado de lá, do das políticas, existisse uma arma e ele estivesse ajoelhado, à espera da clemência.

Naturalmente, neste processo, não podemos esquecer o poder das farmacêuticas, que sendo privados a actuar num sector tão delicado como o da saúde, terão sempre a imagem de desprezíveis e oportunistas. A verdade é que, em certa medida, o são. Têm curas para doenças, onde existe o mérito de as criarem, mas fazem disso um dos negócios mais vantajosos do mundo. Sabendo que as vidas humanas são o bem mais precioso (ou assim se espera), fazem o que querem nas negociações. Mas não com Portugal, com este Governo habituado a viver nos limites da austeridade, ou habituado a fazer viver nos limites da austeridade. Há um ano que se negoceia e o Governo manteve-se irredutível, implacável na demonstração de força. Nem que para isso tenham que morrer pessoas, conforme deu a entender o primeiro-ministro, ao referir: o Estado deve fazer tudo o que estiver ao seu alcance para salvar vidas humanas, mas não custe o que custar.

Para mim, é confrangedor como alguém que leva o leme do país possa ter declarações desta frieza. Bem sei que não será fácil uma negociação deste género, atendendo ao poder das farmacêuticas e às dificuldades financeiras de Portugal, mas se não se hesita na hora de salvar bancos, após falhas graves de gestão, o mínimo que se poderia esperar numa situação destas seria a demonstração de alguma sensibilidade pela vida das pessoas. Custe o que custar só poderia ser utilizado para salvar as vidas, não para informar que elas não valem isso.

Dito isto, é importante reforçar que há mais políticas a darem pouco valor à condição humana, pela vontade de demonstração de poder. Reparem como o BCE, pelas mãos de Mario Dragui, não hesitou em colocar abaixo, com frieza, as expectativas dos gregos de que podem mudar as políticas europeias. Castigaram-nos, vedando a compra de dívida pública do Estado grego e apenas garantindo o acesso à linha de emergência de liquidez, onde os juros disparam. Enquanto os gregos passam dificuldades, aparte todos os problemas de gestão que o país antes possa ter tido. Aqui, para mim, o que está em causa não é o PSD, o Syriza ou mesmo o BCE, o que está em causa é a linha mestra que guia as políticas: os braços-de-ferro já não valem cervejas no balcão mais próximo, valem vidas.