Uma barca de mulheres para quebrar o telhado de vidro da tv

É o primeiro programa de debate da actualidade feito apenas por mulheres. O Barca do Inferno não foi pensado numa lógica sexista, mas pode transformar-se num meio de transporte para um país com menos discriminação de género.

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Chama-se Barca do Inferno, começou na segunda-feira às 22 horas e junta o humorista Nilton com a deputada Isabel Moreira, a jornalista Manuela Moura Guedes, a psicóloga, autora e humorista Marta Gautier, a historiadora Raquel Varela. Às quatro, juntar-se-á mais à frente a deputada Francisca Almeida.

Barca do Inferno quebra ainda com uma outra hegemonia, a do domínio dos homens no espaço público mediático de comentário. É o primeiro programa de debate da actualidade feito apenas por mulheres.

Uma solução que parece inverter em espelho o estereótipo de que o comentário político e televisivo é território masculino. E deste modo pode contribuir para quebrar o telhado de vidro que aparentemente não se vê, mas está lá, tapando o acesso ao espaço público mediático e mantendo aí as mulheres invisíveis.

José Manuel Portugal garante que o programa não foi pensado com nenhum carácter “sexista ou feminista”, mas com o objectivo de “ser uma sátira social em tom crítico sobre assuntos que marcam a actualidade” feito por “cinco mulheres com voz própria, diferenciadas ideologicamente, escolhidas pelo seu percurso e posicionamento intelectual”. Na segunda-feira da estreia, debateram a Justiça, em particular o Citius, a Educação, em torno dos erros na colocação de professores, e a intenção do Governo de tornar público em certas condições um registo com os nomes das pessoas que cumpriram pena por crimes de pedofilia.

Admite que “o objectivo era fazer um programa moderado pelo Nilton, que não é só humorista, é autor e trabalha em motivação”. Depois, ficou assente que entraria também Manuela Moura Guedes. Quando José Manuel Portugal e Nilton começaram a pensar os nomes para o painel de comentadores, ao terceiro perceberam que tinham apenas escolhido mulheres. “Então decidimos que seriam só mulheres”, confessa o director de informação da RTP, que insiste na ideia de que esta escolha não se deve a nenhuma intenção de “ridicularizar ou reduzir as mulheres”. Até porque, sublinha, “todas elas têm qualidade” e o objectivo “é ter diversidade de pontos de vista que estas cinco intelectuais representem e que elas falem com inteira liberdade”.

A não intencionalidade de transformar este programa numa bandeira contra a discriminação de género é assumida pelas quatro participantes que iniciaram o programa — a deputada do PSD Francisca Almeida optou por não falar com a Revista 2 porque se ia ausentar do país.

A deputada do PS Isabel Moreira considera que “não há dúvida de que no espaço público de comentário é dominante o universo masculino”, mas esclarece que “não foi por contraponto” que aceitou. “Aceitei por ser um programa de debate que por acaso é só com mulheres que estão ali com ideias diferentes e com posições ideológicas diversificadas e disponíveis [para o debate]”, explica, acrescentando: “Até porque um programa só de mulheres seria pouco, com tanto espaço que é dado aos homens e uma tão grande ausência de mulheres no espaço público.” E precisa que “as mulheres estão sub-representadas no comentário, na política, nas instituições, nas direcções das empresas”. Ou seja, “a ausência de mulheres no espaço público mediatizado é reflexo da ausência de igualdade, é coerente com o que se passa na sociedade em geral”.

Também a historiadora Raquel Varela nega que tenha sido um critério de género o que a levou a aceitar participar em Barca do Inferno. “Há sectores onde as mulheres têm presença.” Contudo, admite: “É verdade que no comentário político os homens são esmagadores.” No Barca do Inferno, “as escolhas têm que ver com o tipo de pessoas que participam e não é por serem homens ou mulheres.” E remata: “Está acentuado um carácter mais contraditório com mais opiniões distintas e sem ser por representação política. É importante ter formatos que não dão só voz às representações parlamentares.”

Manuela Moura Guedes sublinha que “as mulheres têm vindo a ganhar capacidade”. Considerando que “as quotas são artificiais” e que “a promoção de mulheres por serem mulheres é estupidez”, a jornalista admite que, “pela exposição pública, as mulheres mostrem” aquilo de que são capazes, até porque “são necessárias, como os homens o são”. Considera até que a questão da discriminação de género se vai fazer sentir mas contra o programa. “Muitos vão vê-lo como o programa de mulheres a discutir”, prevê. “Enquanto os homens podem dizer coisas superficiais, quando as mulheres o fazem, a reacção é: olha as galinhas. Há sempre necessidade de um esforço maior por parte das mulheres. O facto de sermos mulheres vai provocar uma certa condescendência em meios mais tradicionais e mais machistas.” E conclui: “Isto de as mulheres terem de fazer um esforço duplicado para se impor tem de acabar, porque são os outros que estão mal. Já se deu provas que nem o cérebro, nem a capacidade de análise, nem a capacidade de trabalho são menores. Noutros países mais desenvolvidos em questões de igualdade, há mulheres em lugares-chave.”

Marta Gautier faz o paralelo com o mundo do humor, que é o seu e onde as mulheres são raras. “Vêm-me fazendo essa pergunta. Eu por defeito nunca penso assim, são pessoas, é indiferente se são homens ou mulheres.” E afirma: “Muitas vezes, as mulheres agem com a força que não lhes dão e são vozes mais tímidas.”

Por seu lado, Nilton lamenta que “haja tendência a fechar as pessoas em género ou profissão”. E defende que, “no fundo, a opinião não tem género”, embora acrescente que “as mulheres têm uma sensibilidade diferente”. Não deixa de se demarcar de discriminações. “Sou contra o totalitarismo masculino. Continuamos a ter uma sociedade patriarcal, em que o homem decide. Se conseguirmos dar espaço, é bom. O programa não foi pensado [com esse intuito], mas só temos a ganhar com isso”, conclui.

Carla Baptista, investigadora sobre questões de género e professora de Comunicação Social na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, adverte que “o programa é bom porque traz mulheres”, ainda que, “do ponto de vista mais profundo, apenas inverte o estereótipo, não o muda”.

Entre Setembro de 2010 e Junho de 2011, esta investigadora analisou os comentários à actualidade em três canais generalistas (RTP1, SIC e TVI) e três canais temáticos (SICN, RTPN e TVI24). Foram estudados 1673 programas com 2158 convidados, dos quais 1812 eram homens e 346 mulheres. A investigação foi publicada sob o título “Mulheres (quase) não entram nos estúdios da televisão portuguesa”, um capítulo da obra A TV dos Jornalistas, editada electronicamente em 2011, pela Universidade do Minho.

À Revista 2, Carla Baptista diz que não tem novos dados, mas está convencida de que “a tendência se mantém”. E defende que “há uma invisibilidade das mulheres no espaço público mediatizado que é superior à que há no espaço público em geral”, onde estão “cada vez mais” presentes e “isso é uma realidade incontestável”. Mas explica que “os media são estruturas opacas, perpetuam formas arcaicas e subliminares de poder”.

Mesmo o facto de haver “uma feminização das redacções”, ela não atinge ainda as altas chefias — “só agora se começam a quebrar” os condicionalismos “e as mulheres começam a integrar direcções”. Carla Baptista considera, contudo, que as mulheres nas direcções reproduzem uma orientação editorial dominada pela “masculinização dos conteúdos”.

Na sua opinião, o Barca do Inferno cumpre um papel no quebrar do estado das coisas relativamente às questões de género, não só pela visibilidade que dá a mulheres mas também pelos “comentários que gerou na Net”.

Esta investigadora consultou blogues e chats e detectou um conjunto de comentários de telespectadores que “hiperbolizam, por exemplo, dizem que parecem galinhas” — ou seja, confirmando as previsões de Manuela Moura Guedes. E contrapõe: “Ora se fossem homens, não havia esse tipo de reacção, ninguém diria parecem dois galos.” E salienta assim que “da parte do público há reacções de dinâmica de género”.

Também a escritora Maria Isabel Barreno, co-autora de Novas Cartas Portuguesas e autora de A Morte da Mãe, adverte para as causas profundas da discriminação de género e do consequente afastamento das mulheres do espaço público de um modo geral. “O aparecimento de mulheres no espaço público mediatizado está longe de ser suficiente”, até porque “as mulheres são mais de 50%, mas o comentário político é de quem tem direito à palavra no espaço público, ou seja, dos homens”, afirma. E prossegue: “É coisa tão profunda, tão antiga, quanto é antigo e profundo o patriarcado, por isso é difícil combater, vem desde o mito fundador de Adão e Eva.”

Advertindo que há uma mitificação do papel da mulher ao longo dos tempos, Maria Isabel Barreno frisa que “a história diz que as mulheres não trabalhavam, o que não é verdade. O seu trabalho foi sempre ocultado, a história das mulheres foi sempre ocultada”. Em contraposição, “a presença da mulher no espaço público é uma luta recente, tem cem anos”, por isso “há estruturas centrais básicas que as pessoas nem questionam”.

Mesmo entendendo que “as medidas legais têm eficácia até certo ponto — por exemplo, as leis da paridade resolvem na superestrutura”, este é “um trabalho lento”. Para Maria Isabel Barreno, “este programa devia ser publicitado para chamar à atenção” para o assunto, “ter uma publicidade agressiva para conquistar audiência — é uma óptima iniciativa, tem é de se fazer os possíveis para não passar despercebido e até no próprio programa se devia falar sobre isso”.

A dificuldade em mudar mentalidades por decreto, logo, anular as discriminações de género por força da lei, é salientada por Elza Pais, deputada do PS que foi secretária de Estado da Igualdade do último governo de José Sócrates e anteriormente presidente da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género.

Como responsável por muita da legislação e dos programas de intervenção na sociedade que foram levados a cabo, Elza Pais sustenta que “é um caminho difícil e não se percorre num curto prazo de tempo, por isso cada geração de políticos fará um percurso”.

Não deixando de destacar o trabalho feito pelos governos de Sócrates neste domínio, Elza Pais reconhece que “o espaço de discussão política continua a ser dos homens, há meia dúzia de países com líderes mulheres” e em Portugal há dois casos, Catarina Martins, com a liderança partilhada do BE, e Assunção Esteves, presidente da Assembleia da República.

Sublinha o avanço da lei da paridade, que impõe uma representação mínima por sexo de um terço e defende que, “se não se fizesse nada, levaria 60 ou mais anos” a ser atingido algum equilíbrio na representação por sexo. Já em relação às autarquias, “a lei da paridade funciona na vereação, mas presidentes são apenas 18%”, diz, acrescentando que “havia um plano nas autarquias para a organização partilhada da administração, que foi retirado”.

Elza Pais aponta ainda zonas da sociedade onde a discriminação é grande e defende que “a directiva aprovada pelo actual Governo para que os conselhos de administração das empresas sejam paritários, como são em Espanha e na Noruega, não é suficiente e devem ser adoptadas quotas”.

Com este fundo social, “a comunicação social não foge a esta regra e os padrões instituídos estão ali todos”. E questiona: “Então não há mulheres que possam fazê-lo?”

A antiga secretária de Estado da Igualdade adverte que “não se trata de uma questão de representação, é de dar espaço a quem é competente”. E argumenta: “Costumo dizer que só haverá paridade quando houver tantas mulheres incompetentes quanto há homens. Critica-se as quotas com o argumento de que não há promoção por mérito e que se promove incompetentes. Só se discute a competência das mulheres, nunca a dos homens.”

E sustentando que “a comunicação social não tem conseguido romper o estereótipo” — “Barca do Inferno situa-se no quadro dos outros, só de homens, e reproduz o estereótipo.” Mas acrescenta: “As pessoas que vão participar, como as minhas colegas Isabel Moreira e Francisca Almeida, são informadas, irão contribuir para a desconstrução de muitos estereótipos.”

Já a politóloga e investigadora do ICS Marina Costa Lobo considera que “o programa pode ser interessante como o Eixo do Mal e Governo Sombra, que têm pessoas ligadas à comédia, o que é bom, mas não chega”, uma vez que “há uma falta enorme de mulheres no espaço público”.

Enquanto subscritora de uma carta aberta divulgada no PÚBLICO em protesto contra o facto de as conferências Olhares Cruzados sobre Portugal (organizadas no início do ano por este jornal e a Universidade Católica) não terem nos seus painéis de debate uma única mulher, Marina Costa Lobo refere: “Tenho organizado encontros e percebo que sistematicamente não há preocupação em arranjar mulheres como peritas. Não há sensibilidade de quem organiza para o facto de que mulheres não são uma minoria, são a maioria.” E conclui que em Portugal “não há consciência de que tudo é binário”.