A cidade atrás do muro

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Da rua, ninguém o adivinha. Percorre-se a Rua de Alexandre Herculano ou a Rua das Fontainhas e não há qualquer indício que aponte para a existência de um núcleo habitacional de casas de um ou dois pisos, com arruamentos próprios, tanques e vasos de flores nas ruas. Para chegar ao Bairro Herculano, ou se quer mesmo ir lá e já se sabe que ele existe ou é preciso ter a curiosidade para descobrir o que fica no fim de uma viela esconsa. A cidade que lá se encontra tem perfumes de aldeia. Estávamos em 2012 e tinha na agenda o acompanhamento de uma visita política ao Bairro Herculano. O ponto de encontro, junto a um café na Rua de Alexandre Herculano, foi escrupulosamente cumprido, mas do bairro, nem sinais. Esperava-se a chegada do, então, ainda eventual candidato socialista à Câmara do Porto, Manuel Pizarro, e ninguém parecia saber muito bem onde ficava, afinal, esse misterioso bairro. Só quando o grupo já estava reunido é que um morador mostrou o caminho, começando a subir o que parecia apenas uma viela desencorajadora, ao lado das fachadas de dois e três pisos das casas da rua.

 Ao fundo, estava o bairro. E o bairro é algo que quase não se consegue explicar. É preciso vê-lo. As casas de um e dois pisos têm portas voltadas para as ruas pejadas de grandes vasos de flores coloridas, tanques, gatos, algum banco que uma moradora trouxe para se sentar à porta de casa, roupa a secar. A cidade, ali, não se ouve. Ouve-se a música que sai de um rádio, os bons-dias cordiais de quem passa, o tagarelar de alguma criança.

Quando foi construído, na década de 80 do século XIX, o bairro operário estava munido de um núcleo central de retretes, para servir as casas que não as tinham, e que hoje estão fechadas, semidestruídas e sem serventia. Havia também uma capela, lavadouros e mercearias. Hoje, ainda lá está uma, de portas abertas, embora o dono não augure grande futuro ao espaço, com cada vez menos clientela.

Contava Jorge Ricardo Pinto, no livro O Porto Oriental no final do século XIX, que o bairro foi mandado construir pelo casal Maria Augusta Pinto Basto Martins e Manuel Lopes Martins, herdeiros da família Pinto Basto, que tiveram de contrair três empréstimos à banca para edificar as 129 casas que, na época, possuíam “condições de habitabilidade invejáveis face a qualquer outro empreendimento para classes operárias quer na parte oriental quer em toda a cidade do Porto”.

De facto, o Bairro Herculano está ao mesmo tempo perto e muito longe das “ilhas” da cidade, construídas no século XIX para albergar os operários. Perto pelo ambiente quase familiar entre os que lá vivem, de independência em relação à envolvência, mas longe pelas condições que tem, bem melhores do que as da maior parte das outras ilhas portuenses.

Das 129 casas, em 2010 apenas duas estariam devolutas, mas em 2012, quando lá fui pela primeira vez, já 20 habitações estavam vazias. As pessoas queixavam-se do empedrado antigo das ruas, que causavam tropeções nos mais velhos e demasiados solavancos aos carros de bebé, e da (ainda) falta de casas de banho em algumas casas. O então putativo candidato e hoje vereador da Habitação aproveitava para apresentar o bairro como o exemplo do que podia ser uma cidade que não assentava na dicotomia casa para ricos/bairro social. Um local que, se recuperado e com rendas atractivas, podia apelar a casais jovens e trazer mais moradores para o centro.

Voltei ao bairro há poucas semanas e a calmaria alegre que o caracteriza pareceu-me intacta. O geógrafo Jorge Ricardo Pinto, na obra já citada, dizia que, apesar das condições oferecidas, o bairro se revelou “um fracasso imobiliário”, tendo conduzido o seu promotor à ruína. Hoje, o Bairro Herculano é um casulo dentro da cidade, famoso pelos seus festejos sanjoaninos, desconhecido de quase todos os que cruzam as movimentadas artérias que o rodeiam. Até parece que se se fechassem os acessos ao interior, a cidade não notaria qualquer diferença, e os seus moradores poderiam continuar a viver ali, esquecidos do tempo e do espaço. Como uma verdadeira ilha perdida do resto do mundo, onde a vida gira em torno de vasos de flores coloridas.