Clássicos, românticos e aventureiros de café

As motos cafe racer estão de volta. É um revivalismo, um lifestyle cool de gente ligada ao design, à moda e às artes, mas é mais do que isso.

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A Maria Panzer nasceu em 1976 e Carlos Martins também. Ele queria uma alma gémea, mas quando a foi buscar, depois de três meses à procura, achou-a feia. Desmontou-a toda. Espalhou os pedaços pela garagem, colocou o coração em cima de uma mesa e pô-lo a trabalhar.

Tinha vida aquele motor. Bastaria reconstituir o corpo à sua volta, religar engrenagens e circuitos, encontrar os elos e os nexos que dariam ao organismo da velha BMW R75/6 a oportunidade de uma segunda existência.

A moto foi comprada no Stand Virtual, por 3 mil euros. Uma cambota, no eBay, por mais 200, e outras peças vieram da BMW, que continua a comercializar as componentes de todas as suas motos antigas.

Teria sido possível reconstituir fielmente o veículo original, caso fosse essa a ideia de Carlos. Mas o que ele queria era construir uma moto nova. “Que tivesse alguma coisa de mim”, explica. Desmontar por completo a moto já inaugura uma relação muito próxima, quase íntima. Carlos, que é engenheiro mecânico de formação, desmontou o carburador e voltou a montá-lo. Imaginou filtros de ar cónicos que fizessem disparar a performance, em conjugação com caixa de velocidades e transmissão de origem. Quadro e suspensão seriam também BMW. Concebeu um modelo desportivo, reduzido ao essencial, todo intencionado para a potência e a velocidade, uma cafe racer. “Teria de ter o meu cunho pessoal, ser simples, esteticamente apurada, possuir algo do nosso gosto e da nossa filosofia de vida, aquilo que eu e a minha mulher achamos que deveria ser uma moto.”

Ou seja, no plano do concreto, o que queriam era um motociclo que os transportasse em estilo até Setúbal, a um certo restaurante especializado em chocos fritos. Carlos dava palpites de mecânica e aerodinâmica, a mulher pronunciava-se sobre as cores. O novo ser teria material genético de ambos, como um filho, compara Carlos.

As ideias iam surgindo, entre conversas e pesquisas na Net. Talvez o que queriam fosse afinal, não uma cafe racer, mas uma bobber (modelo custom sem acessórios e de pára-choques cortados), já que o objectivo não era fazer corridas, mas ir comer chocos a Setúbal, aos fins-de-semana.

Numa dada fase era preciso construir um banco para a moto. Numa troca de impressões com o grupo de motards que todas as sextas à noite se encontra no pub Picadilly, no Estoril, alguém sugeriu os Maria. Carlos não conhecia, mas foi ver o site dos dois construtores de cafe racers, scramblers e outros tipos de motos custom, e gostou. Quando, por email, lhes pediu um banco para a sua BMW, a resposta foi rápida: “Não construímos bancos, construímos motos.”

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Carlos Martins, o responsável geral da BMW em Portugal, conduz uma moto construída pela Maria Riding Company Nuno Ferreira Santos

A marca Maria Riding Company existe há quatro anos ou talvez mais. Oficialmente, foi criada em 2011. Luís Correia, 40 anos, e Rui Alexandre, 42, ansiavam por um certo tipo de liberdade que, não o escondem, se confundia com saudades da adolescência. Nunca mais se divertiram tanto, depois de terem entrado na universidade e começado a trabalhar. Antes, andavam de skate e de motorizada, faziam surf, improvisavam tudo, divertiam-se.

“Fazer surf, hoje, não tem tanta graça”, diz Rui. “Há escolas de surf, professores, equipamento. Quando eu era miúdo, ia de comboio para Carcavelos, ou de camioneta para a Ericeira, sozinho. Fui assaltado duas vezes. Não tinha dinheiro, não usava fato. A praia estava deserta…”

Depois, Rui entrou para o curso de Bioquímica. Fez o mestrado, ganhou uma bolsa de investigação de quatro anos, para concluir o doutoramento. Luís fez o curso de Design no IADE e começou a trabalhar em agências de publicidade, em design gráfico, webdesign. De repente, nem eles sabem explicar o que aconteceu.

Luís sentiu que estava farto de pôr a sua criatividade ao serviço de outros. Cansado de vender marcas que não eram dele, decidiu criar a sua própria. Rui deitou fora a bolsa do doutoramento. Aterrorizado com a ideia de passar cinco anos fechado num laboratório, nunca mais quis saber de radicais-livres e antioxidantes, que eram a sua área de investigação. “Foi uma decisão rápida, mas sei que definitiva. Decidi dedicar-me apenas ao design.”

Os dois amigos sempre gostaram de motos antigas, mas à sua ideia de negócio não foi alheia a noção de que as cafe racers estavam a tornar-se imensamente populares em vários países. As motos modificadas inspiradas em modelos europeus dos anos 1950 e 60 faziam sucesso, principalmente entre profissionais da moda, gente ligada ao design e às artes, acima dos 40 anos de idade.

Era uma tendência ligada ao revivalismo estético, em combinação com a moda do Do It Yourself (DIY) e uma pulsão ideológica antiglobalização e uniformização.

Luís e Rui sabiam que havia aí um nicho de mercado, que lhes permitiria desenvolver um conceito, uma marca a seu gosto, sem concessões comerciais, que fabricasse motos de modelo único, personalizadas, e pranchas de surf. “Se o objectivo fosse ganhar muito dinheiro, dedicar-nos-íamos a outra coisa”, diz Rui. “Não fazemos concessões nem planeamentos comerciais. Não queremos subverter o espírito da marca, para que possamos continuar orgulhosos dela. O que nós queremos é fazer as nossas próprias coisas.”

O mercado português não seria suficiente, mas um uso inteligente da Internet, aliado a conhecimentos de design e comunicação, permitiria colocar os produtos no mundo inteiro.

Luís foi fazer um curso de Mecânica e Soldadura, contrataram mecânicos tradicionais e serralheiros. Tudo começou com a aquisição de uma moto velha, que começaram a modificar. Era uma Yamaha XS 650, de 1980, e absorveu em design, filosofia, atitude e estilo tudo o que os entretanto baptizados como Maria Riding Company queriam da vida e das motos: “Nós somos selvagens. Não temos regras”, diz Rui. “Eu vejo uma moto como uma escultura, uma obra de arte”, explica Luís. “Gosto de metal, latão, cobre, pele. Não gosto de plásticos. Não gosto da uniformização. Gosto de peças únicas.”

Essa primeira obra, a que chamaram Eva, nunca deveria ter sido vendida, acham eles agora. Mas é tarde. Um cliente do Canadá fechou o negócio pela Net, e adeus Eva. Luís emociona-se quando recorda a sua querida de jantes e rodas negras, punhos brancos, depósito e assento em tons de café e creme.

“Levou dois filtros de ar na admissão ao motor, que o faziam dar um esticão incrível. O trabalhar não era contínuo. Falhava, dava ‘rateres’, estoiros… Mas só de falar disto estou a arrepiar-me todo.”

Depois de Eva, os Maria já venderam mais umas oito ou nove motos, na maioria dos casos para o estrangeiro. A relação com os clientes oscila entre a do alfaiate e a do artista. Há quem traga uma moto já comprada, e uma ideia e customização, por vezes acompanhada de fotografias retiradas da Internet ou desenhos. Há quem não traga moto, mas saiba o que quer, deixando aos Maria a tarefa de adquirir uma moto usada e conceber as modificações, e há quem não tenha ideia nenhuma e confie totalmente nos artistas Luís e Rui.

Quase sempre, porém, o cliente gosta de acompanhar o trabalho. Primeiro aprecia os esboços criados em computador por Luís, depois segue as várias fases do trabalho. A construção de uma cafe racer, uma scrambler (primeiras adaptações de motos de estrada a todo-o-terreno, com pneus de alto perfil e escapes levantados), ou uma street tracker (motos de corrida de pista adaptadas para uso na cidade) pode demorar meses ou anos. O preço pode ascender aos 15 mil euros ou mesmo 30 mil.

As peças usadas, como as suspensões, discos, baterias ou sistema de escape são de qualidade por vezes muito superior às montadas nas motos de série. Os preços são muito mais elevados, mas a performance das motos assim equipadas, em termos de capacidade de manobra e potência, também não é comparável.

Não obstante, as motos custom do tipo cafe racer, street tracker ou scrambler estão longe de ser confortáveis. Também não conseguem competir com as motos modernas em velocidade de ponta, segurança, baixa emissão de gases ou economia de combustível. Dito de outra forma: as cafe racers não servem para nada. Na melhor das hipóteses, levam-nos a comer chocos fritos a Setúbal ou deixam-nos fazer boa figura nas esplanadas dos cafés.

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Luis Correia e Rui Alexandre criaram oficialmente a Maria Riding Company em 2011 Nuno Ferreira Santos

Depois de longos minutos a tecer apaixonados elogios a uma das mais recentes obras-primas a sair da garagem dos Maria em Alcântara, Luís conclui, a respeito da estonteante Ducati azul, crismada como Maria Sniper: “Só um louco iria com isto até ao Algarve!”

Mas todo o encanto destas obras de arte racing está nisso mesmo. São duras e barulhentas, imperfeitas. Fazem doer as costas, sujam tudo de óleo, requerem uma ubíqua caixa de ferramentas e alguns conhecimentos de mecânica.

Se há uma definição para este tipo de veículos, ela só pode, aliás, residir aqui. Trata-se de uma moto única, construída à medida do seu utilizador, e consiste num mecanismo que o seu dono pode compreender. Quem tem uma cafe racer (usemos este termo por comodidade, ainda que os puristas considerem abusiva a generalização) tem de estar preparado para a reparar, tal como foi capaz de a construir, ou modificar. Pelo menos foi assim, nas origens do fenómeno, nos anos 1960, já que hoje há empresas de especialistas em “ajudar” cada um a construir a sua moto pessoal.

Mas a ideia mantém-se: o veículo que usamos não pode estar longe do nosso entendimento. Uma das características da sociedade contemporânea é que perdemos o controlo sobre os utensílios de que necessitamos. Um telemóvel, um computador ou uma televisão fazem parte da nossa vida, mas quantos seriam capazes de, perdidos numa ilha deserta, construir um desses equipamentos tão básicos? Isolados do sistema seríamos uns incapazes.

Essa dependência, que tanto existe em relação aos gadgets electrónicos como à economia ou, digamos, ao sistema bancário, torna-nos estranhos à sociedade humana e a nós próprios. Faz-nos vulneráveis e manipuláveis, obriga-nos a escolher não ser livres.

O movimento das cafe racers pode ser visto como um manifesto contra essa forma de escravatura. A cultura motard está impregnada de tentação ideológica.

Seja porque as longas viagens solitárias em duas rodas propiciem o pensamento reflexivo, seja porque nenhuma outra máquina se liga tão intimamente ao organismo humano, multiplicando-o em poder e liberdade, as motos têm sido objecto e tema fecundo da filosofia e da literatura. Num livro célebre, publicado em 1974 nos Estados Unidos, Zen and the Art of Motorcycle Maintenance, Robert Pirsig descreve duas atitudes filosóficas perante a vida por comparação com dois comportamentos distintos dos motociclistas. O livro descreve uma viagem de moto que Robert realiza com o seu filho, Chris, pelos estados do Dakota e Montana. Noutra moto segue um amigo, John, com a esposa, Sylvia.

Robert sabe e interessa-se pela mecânica da moto, ao contrário de John e a mulher. Estes consideram que as preocupações com embraiagens, platinados, velas e carburadores, gasolina e óleo estragam o prazer da viagem, a sensação do vento no rosto ou o fruir das paisagens. Robert irrita-se com isso, não só porque lhe fica a caber a ele a manutenção das duas motos, mas por causa também da sobranceria do amigo. John considera a tecnologia uma forma inferior de conhecimento.

Para Robert, a mecânica da moto não é aço, borracha, eixos, válvulas, parafusos, mas “relações, análises, sínteses, deduções abstractas”. É puro pensamento.

Sempre houve na História, explica ele ao filho, enquanto a BMW plana entre as montanhas, duas formas filosóficas distintas de compreensão do mundo: a romântica e a clássica. “A compreensão clássica vê o mundo acima de tudo como a própria forma subjacente. A compreensão romântica vê-o em termos de aparências imediatas.”

Os românticos valorizam as emoções e os sentimentos, os clássicos a razão e os factos. “Se mostrarmos a um romântico um motor, uma planta ou um esquema electrónico, ele não se interessará muito. Essas coisas não o atraem, porque ele só vê a superfície. Relações enfadonhas de nomes, linhas e números. Mas, se mostrarmos a mesma planta ou esquema a um clássico, ele ficará fascinado.”

Na sela de uma motocicleta, as duas visões encontram-se, explica Pirsig. “Embora as viagens de moto sejam românticas, a manutenção das motos é puramente clássica.”

As duas visões distintas, que separam cientistas e artistas, pragmáticos e sonhadores, talvez não sejam afinal incompatíveis. A compreensão das formas subjacentes enche o espírito do artista de liberdade e poder.

Nas várias duplas de construtores de cafe racers, há esta dicotomia. Nos Maria, Luís é o clássico, Rui o romântico. O primeiro é quem concebe as motos, quem as desmonta e as repara. O segundo monta na sua Harley Davidson e nem verifica a pressão dos pneus. “Eu gosto é de andar de moto”, diz Rui, que, nos Maria, se encarrega da imagem da marca e da comunicação. Luís abana a cabeça. “Estas motos, é um crime andar nelas e não tratar delas.”

Alguns clientes proprietários de cafe racers são mesmo obcecados. “Andam uns metros e põem-se logo a limpar e a polir.”

A quem comprar um dos seus modelos, os Maria oferecem um curso de manutenção da moto, em que ensinam a lavar e proteger, além de alguns rudimentos de mecânica.

É importante essa proximidade física com o veículo, que não existe em relação a um carro ou, na maior parte dos casos, às motos de série. A sensação de possuir e dominar uma máquina que nós próprios construímos, transformando-a dessa maneira numa verdadeira extensão do corpo, numa criatura viva e solidária, quase humana.

Luís e Rui vivem essa relação agreste e sensual com as motos. Quando têm tempo, reúnem um grupo de seis amigos, auto-intitulado Gang do Mal, e partem com as suas motos custom para o Alentejo ou a serra da Lousã. Da última vez, estiveram quatro dias sem mudar de roupa, a tomar banho em nascentes na floresta. Passaram a maior parte do tempo a fazer corridas, sem capacete, numa pista de aviação abandonada.

A tradição das cafe racers está ligada aos gangues de juventude. Designadamente aos Rockers de Londres, dos anos 60, que frequentavam os cafés (como o famoso Ace Cafe) e se opunham aos rivais Mods, que conduziam scooters e vestiam roupa de marca. Os Rockers preferiam as motos grandes, da marca Triumph ou BSA, modificadas para terem maior performance.

Uma cafe racer era despojada de tudo o que fosse supérfluo, incluindo pistas e retrovisores, e equipada com kits de motor que lhe aumentavam a potência. Eram motos de corrida, urbanas. As competições eram feitas com grupos entre cafés, ou em contra-relógio: o desafio era ir de um café a outro e voltar, no tempo que durava uma canção que alguém punha a tocar com uma moeda numa jukebox.

O termo “cafe racer” também era usado pejorativamente para designar os falsos corredores, a quem apenas importava a estética das motos. Racers de café.

As lutas entre Rockers e Mods em estâncias balneares britânicas foram retratadas em vários filmes, e marcaram o início de uma cultura de juventude violenta e contestatária.

Os Rockers usavam o cabelo em popa e uma indumentária que combinava o estilo eduardiano dos Teddy Boys com farpelas rockabilly. As motos potentes e rápidas que conduziam simbolizavam a ascensão social de que eram uma espécie de expoente.

A história das motos confunde-se com a da cultura popular, da emancipação da juventude e da revolução social. Na Londres dos anos 40, grupos de jovens das classes privilegiadas adoptaram de forma revivalista os casacos compridos de golas largas e calças afuniladas da época eduardiana (do tempo de Eduardo VII), como forma de protesto contra as políticas de austeridade do pós-guerra.

Jovens das classes baixas, em contacto com estas “faunas” nos antros de vida nocturna do Soho, começaram a imitar as novas tendências, como forma de reivindicar estatuto social. Os Teddy Boys nascem deste roubo do estilo por parte dos jovens pobres do Sul de Londres. Misturados com os grupos de marginais e traficantes influentes dos bairros operários, como os chamados Spivs e Cosh Boys, os Teddy Boys evoluíram para os Rockers, que entretanto absorvem toda a cultura rock’n’roll que começa a chegar dos Estados Unidos.

Os Beatles e os Rolling Stones são fruto desta cultura, tal como o é o Maio de 68 e toda a revolução da juventude dos anos 60.

Não é fácil ver no Gang do Mal da serra da Lousã os descendentes dos Rockers de South London, mas talvez o regresso das cafe racers se relacione com essa necessidade de procurar o prazer da vida, um relacionamento mais autêntico, livre e orgânico com o mundo, a candura e a força da juventude como ideais políticos.

Ainda que quase sempre inconscientemente, talvez se procure uma ponte com esses movimentos nascidos da base da sociedade, na juventude pobre e operária para quem a música e as motos eram instrumentos de libertação, de transformação da vida em algo mais empolgante, em que o prazer não é apenas a ausência de dor e ser livre é mais do que apenas não ser escravo.

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Armando Fontes e Vítor Rocha têm a sua marca, Rua Machines, instalada numa pequena garagem: as modificações que fazem não procuram imitar mas reinterpretar Paulo Pimenta

Os Rua Machines, empresa de Esmoriz, parecem viver esse ideal de liberdade. A sua oficina está instalada numa pequena garagem, e nem Armando Fontes, 44 anos, nem Vítor Rocha, 41, se dedicam a tempo inteiro à “preparação” de motos, como eles designam a sua actividade.

Cada um tem a sua, construída de acordo com o seu gosto e tipo físico, e não é capaz de conduzir mais nenhuma moto. “Ela é o prolongamento de mim, não me sinto bem noutra. Isto é como amar uma mulher”, diz Vítor. “Esta mais pequena foi feita para mim”, diz Armando, que é mais franzino. “Se eu andasse naquela do Vítor, parecia um miúdo que tinha roubado a moto ao pai.”

Vítor é vendedor de profissão e portanto trata da parte comercial dos Rua Machines, empresa que ambos esperam vir um dia a proporcionar-lhes empregos a tempo inteiro. Armando é designer de moda. Como director artístico do atelier de Miguel Vieira, está a par das tendências internacionais do design. “A moda é cíclica”, diz ele. “Cada época procura inspiração noutras. Mas que se procura não imitar. Não é fazer um filme histórico. O que se faz é uma reinterpretação.”

As influências estéticas que informam a nova tendência das cafe racers é o estilo de Steve McQueen, no filme The Great Escape, ou Marlon Brando em The Wild One. São imagens que incluem o estilo das motos, mas também das roupas, e até de uma atitude cool perante a existência, que volta a parecer adequada nos tempos modernos.

“Isto é uma tendência para gente com sensibilidade estética”, diz Armando. Mas é algo mais do que a estética. É um culto do que é simples, mas ao mesmo tempo único, exclusivo. É importante ter uma moto diferente de todas as outras. Uma moto feita para uma determinada pessoa, intransmissível.

Armando sabe de mecânica, sendo designer. Faz desenhos das motos como quem desenha roupa para um desfile de moda. Gosta da sua caixa de ferramentas e gosta de filosofar sobre motores. Não aprecia, por exemplo, motos com radiador, refrigerados a água. “A água e o óleo não se misturam. Não deve haver água nos motores.” Gaba-se de ser especialista em ruídos. Basta-lhe ouvir o ronco de uma moto para perceber se há algum problema no funcionamento do mecanismo. Armando é um romântico clássico, numa subtil divergência com Vítor, que é provavelmente um clássico romântico. Vítor chama a Armando o “engenheiro” e este diz do sócio que lhe “foge o pé para a sucata”.

Como têm pouco dinheiro para investir, Armando e Vítor compram motos japonesas baratas e transformam-nas em obras de arte. Uma moto pode custar mil euros e vir a ser vendida por 7 mil. Não têm qualquer escrúpulo em misturar componentes de várias marcas e épocas. A palavra de ordem é o sincretismo e o primado da beleza.

As suas produções são baptizadas como Rua 1, Rua 2, Rua 3. A que está agora a ser preparada é para um cliente que tenciona colocá-la na sua sala de estar.

Ton-up era, na gíria dos rockers, a preparação necessária para que uma cafe racer pudesse atingir as 100 milhas por hora. Ao escolher essa designação para a sua empresa, Pedro Oliveira e Daniel Cabral, também com formações em design e comunicação, sabiam estar a fechar o elo com uma época, um estilo e uma atitude. A Ton-up Garage tem a sede em Leça da Palmeira, perto do Porto. Constroem motos, frequentemente com base em modelos recentes, Triumph ou BMW, que modificam segundo critérios estéticos e de performance.

Mas têm a noção de que as motos são apenas uma parte do negócio. “Eu não ganho dinheiro com as motos”, diz Pedro. E explica que o tempo investido na preparação de cada uma tornaria o preço exorbitante, se a fosse vender pelo valor real. As motos são o centro de uma constelação de imagem, a que pertencem outros produtos, como roupa, acessórios, peças. Um projecto seu é comercializar todo o tipo de peças, para que cada pessoa possa construir a sua própria moto ou modificá-la.

Este tipo de motos fica muito caro precisamente por serem modelos únicos, que é a sua característica inalienável. Pedro e Daniel têm pensado em formas de contornar isto. Pensaram em fabricar alguns exemplares de cada modelo, em número limitado, que seriam numerados. Outra possibilidade seria fabricar várias motos iguais, mas vender apenas uma em cada cidade.

Pensam também em diversificar o negócio, criando, por exemplo, uma oficina onde os clientes pudessem vir trabalhar na sua própria moto. A loja da Ton-up, aliás, já é um espaço original, com sofás e lustres no tecto, pouco parecido com uma convencional oficina ou stand de motos.

Pedro gosta de motores e de arte. Estudou Comunicação, fez um mestrado em Inovação e Empreendedorismo Tecnológico e concentra a mensagem da empresa num conceito de lifestyle. “Nós não vendemos motos, vendemos um lifestyle”, explica. “Born to Live, Live To ride. Get a Lifestyle”, é o slogan da Ton-up Garage.

A roupa que vendem não é exclusivamente para andar de moto. “Eu quero que a pessoa esteja enquadrada quando está na moto e continue enquadrada quando se apeia da moto.” A roupa não tem portanto protecções especiais ou características térmicas ou outras. É roupa desenhada para corresponder a um lifestyle, não à actividade do motociclismo. “É preciso estar correcto estilisticamente, haver um fio condutor. Se estás rodeado de harmonia estética, sentes-te bem.” Também nas motos “o funcionamento é premissa, mas é obrigatório o equilíbrio estético”.

E que lifestyle é esse afinal? Pedro não sabe bem explicar. É uma atitude cool. Não é a atitude violenta de grupos motoqueiros como os Hell’s Angels, nem a estética das shopers e da Harley Davidson.

A pertença a um certo grupo, a uma tribo dentro dos fabricantes de motos customs é definida pelas referências dos vários construtores mundiais. Por exemplo os Deus Ex-Machina, da Austrália, definiram um conceito e uma estética, ligando as motos cafe racer e o surf. El Solitário é um construtor espanhol cujo estilo está próximo da ficção científica e da grandiosidade cinematográfica. Os dinamarqueses Wrenchmonkees definiram um estilo de motos simples, urbanas. Algumas lendas da área são os Cafe Racer Dreams, os Zero Engineering ou o Ritmo Sereno, que é um engenheiro japonês que constrói motos de corrida.

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Pedro Oliveira e Daniel Cabral modificam motos, frequentemente Triumph ou BMW, em Leça da Palmeira Paulo Pimenta

Os Maria aceitaram o pedido de Carlos Ribeiro para lhe construírem a BMW, embora geralmente não gostem de motos já desmontadas. O processo começou com uma série de conversas, depois a apresentação de desenhos. Ao todo, Luís mostrou 20 desenhos, com diferentes ideias, combinações de cores e componentes. Os Maria tentam sempre ser coerentes na inspiração, que vão buscar a uma época, a um contexto, como por exemplo os veículos da II Guerra Mundial.

A construção começou quando acertaram no desenho final. Carlos ia ver os trabalhos uma vez por semana. Queria participar, dar ideias. Várias vezes foi preciso desfazer, para voltar a tentar, com novas cores, novas soluções. Houve divergências. Luís queria mudar o depósito original, Carlos não queria que a moto perdesse a identidade.

“No fim, a moto ficou muito mais bonita do que eu a tinha imaginado”, diz Carlos. As cores escolhidas, branco, vermelho e negro, têm que ver com a época dourada da BMW nas corridas de motos.

A Panzer só ficou concluída quando estava perfeita. “Uma moto destas não pode ficar quase bem. É para toda a vida, tem de ser a perfeição.” É verdade que ficou “bem desconfortável, com o banco fino, trava mal, não tem protecção”. Mas é ideal para as escapadelas a Setúbal.

“Para mim, esta moto representa uma certa nostalgia, um regresso ao passado, à vida simples. Um regresso ao tempo em que as coisas eram simples”, diz Carlos Martins. As pessoas têm necessidade disso e preferem muitas vezes estas relíquias às sofisticadas motos modernas, onde tudo é electrónico e nem se sentem os buracos da estrada. É verdade que, para não serem ultrapassadas por uma tendência que se revela cada vez mais forte, as próprias marcas estão a criar modelos com estética retro e uma mecânica mais simples, que permite aos proprietários fazerem algumas modificações. É o caso da R 9T, da BMW. Mas não é a mesma coisa.

Carlos Martins, que, profissionalmente, é o responsável geral da marca de motos BMW em Portugal, vai aos fins-de-semana comer chocos fritos na sua Maria.