A cinco centímetros de derrubar os “Muros da Miséria”

Em 1978, Johan Cruyff falhou o Mundial da ditadura de Videla, dos 6-0 ao Peru, do gesso de Van de Kerkhof e da bola ao poste mais dolorosa do futebol holandês.

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Mario Kempes DR

O golo de Rensenbrink significaria a primeira vitória da "Laranja Mecânica" em Mundiais e o derrube dos anfitriões numa das mais polémicas edições dos Campeonatos do Mundo. Mas vamos por partes.

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O golo de Rensenbrink significaria a primeira vitória da "Laranja Mecânica" em Mundiais e o derrube dos anfitriões numa das mais polémicas edições dos Campeonatos do Mundo. Mas vamos por partes.

Em 1978, a Argentina estava há dois anos debaixo de uma ditadura militar liderada pelo general Jorge Videla. Um regime opressor, garantido através da força do seu exército que perseguia e cometia atrocidades sobre o povo argentino, a viver um dos momentos mais tristes da sua história.

A entrega da organização do Mundial ao país pela FIFA levantou uma grande onda de descontentamento mas, para Videla, o torneio seria a montra ideal para devolver o prestígio ao regime: o ditador ordenou a construção de enormes blocos de cimento para esconder os bairros de lata argentinos, apelidados de “Muros da Miséria”, e milhares de apartamentos de suspeitos políticos foram invadidos pela junta na operação “El Barrido”, receando a presença de jornalistas estrangeiros no país.

A controvérsia continuaria torneio fora: o árbitro galês Clive Thomas deu o apito final no encontro entre Suécia e Brasil, crónicos rivais dos “alvicelestes”, quando Zico se preparava para cabecear para golo e, a necessitar de vencer o Peru por pelo menos 4-0 para alcançar a final, a Argentina goleou por 6-0.

O facto de o guarda-redes peruano Ramon “El Loco” Quiroga ter nascido na Argentina foi o primeiro dos vários rumores a alertar para a possibilidade de o resultado obtido pela equipa da casa ter sido manipulado. O The Sunday Times avançou que cerca de 35 toneladas de cereais foram oferecidos ao Peru, bem como armas e dinheiro, a troco da vitória no encontro. Anos mais tarde, o antigo deputado peruano Genaro Ledesma viria a confirmar o arranjo feito pelas ditaduras de ambos os países. “Videla precisava de conquistar o Mundial para apagar a má imagem da Argentina”, referiu, acrescentando que essa fora a condição imposta pelo líder argentino para aceitar um grupo de presos políticos peruanos exilados.

Tudo culminaria no Estádio Monumental, palco do aguardado jogo de todas as decisões. O último obstáculo dos “alvicelestes” era a Holanda, selecção que alcançava a sua segunda final consecutiva mas que, desta feita, não podia contar com a estrela da companhia. A ausência de Johan Cruyff do Mundial de 1978 foi, durante anos, vista como um protesto para com a junta argentina mas, numa entrevista à Radio Cataluyna, o jogador explicaria, em 2008, que foi uma tentativa de rapto em Barcelona, um ano antes, que o impediu de participar no torneio.

“Para jogar um Mundial tens que estar a 200%”, explicou. “Há momentos em que há outras prioridades na vida”, acrescentou, recordando os fatídicos momentos em que, juntamente com a esposa e filhos, foram amarrados e ameaçados com uma arma no seu apartamento.

Contudo, as maiores adversidades da selecção holandesa ainda estavam por vir: a comitiva foi conduzida na direcção errada para o estágio pelas autoridades argentinas, parando numa pequena vila onde, durante 20 minutos, dezenas de fãs bateram nos vidros do autocarro enquanto gritavam “Argentina!”. O árbitro destinado para a final, Abraham Klein, foi igualmente substituído pelo italiano Serio Gonella que, perante a pressão dos 71 mil adeptos no estádio, decidiu quase sempre a favor da equipa da casa.

Gonella, aliás, começou ainda antes do apito inicial por ser chamado a intervir, quando a Argentina provocou o atraso do encontro ao questionar a legalidade do gesso que o jogador René van de Kerkhof apresentava no pulso (e que tinha utilizado nas cinco partidas anteriores). A acção foi mais tarde vista pelos holandeses como uma forma de alimentar a tensão no hostil público de Buenos Aires.

Em relação ao jogo propriamente dito, Mário Kempes começou por adiantar os “alvicelestes” na primeira parte mas, mesmo contra uma arbitragem escandalosa e algumas atitudes reprováveis dos argentinos, Dick Nanninga empatou aos 82', antes do momento Rob Rensenbrink. A bola que não quis entrar no último minuto do jogo teria impedido o prolongamento que trouxe consigo dois golos argentinos: Kempes, novamente, e Daniel Bertoni deram o tão desejado título à junta nacional.

A Argentina sagrou-se o quinto país anfitrião a conquistar um Campeonato do Mundo mas a campanha dos “alvicelestes” ficou para sempre manchada pela controvérsia da edição. “Acredito fortemente que nunca deveríamos ter disputado aquele Mundial”, afirmaria anos mais tarde Leopoldo Luque. “Com tudo o que sei hoje, não posso dizer que estou orgulhoso da minha vitória. Mas na altura não me apercebi, a maioria de nós não se apercebeu. Apenas jogámos futebol”, explicou o avançado argentino.

Ainda assim, e ao contrário da intenção do ditador Jorge Videla, a conquista do Mundial não trouxe ao país a reputação internacional desejada. A má publicidade da competição alertou para o estado deplorável das políticas latino-americanas e para as atrocidades cometidas pelos vários regimes militares na região. A democracia na Argentina seria restaurada em 1983. Texto editado por Nuno Sousa

Notícia corrigida às 15h28, alterando o minuto no qual o golo do empate da Holanda foi marcado