O direito do “hipster” de drogas ao Xanax da sua avó
Eu vou passar ao lado do revivalismo da heroína e registo apenas com penosa curiosidade a capacidade do ser humano em tornar SEMPRE uma ideia benévola numa tragédia tamanho Saltillo
Vai uma grande confusão na nossa necessidade exterior de conforto. Até há bem pouco tempo, sujeito que tivesse honra em si mesmo enfrentava a sagaz matilha de enfermos que compõe a fila de utentes de uma farmácia munido de uma receita médica e uma sobredose de vergonha: queria uma benzodiazepinazinha por causa da ansiedade, um hipnoticozito à conta da insónia, um anti-depressivito derivado ao défice de furor que lhe tolhia a alegria pela manhã.
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Vai uma grande confusão na nossa necessidade exterior de conforto. Até há bem pouco tempo, sujeito que tivesse honra em si mesmo enfrentava a sagaz matilha de enfermos que compõe a fila de utentes de uma farmácia munido de uma receita médica e uma sobredose de vergonha: queria uma benzodiazepinazinha por causa da ansiedade, um hipnoticozito à conta da insónia, um anti-depressivito derivado ao défice de furor que lhe tolhia a alegria pela manhã.
O português é capaz de aguentar muito tempo as suas intransigências e preconceitos, mas quando as abandona é como polícia de choque em dia de manifestação: ninguém os pára. De onde, subitamente, o cidadão, ao encontrar-se na farmácia tendo em fim a reposição do stock de drogas legais, abandonou a vergonha e passou a dar grandes abraços aos companheiros de desventura janada: “Ah, tu andas a Alprazolam? Também aprecio”. “O quê, só 0,5 miligramas? Fraquinho, tens de experimentar o dobro da dose”. “Eu dou no Morphex”, diz um vanguardista, para enfado do hipster que prefere o Xanax da sua avó. Nos anos dourados da drogaria medicamente assistida, que agora terminam, ninguém precisava de receita para, digamos, se dedicar à gnoseologia numa drageia de Quetiapina.
Não pretendo armar-me em São João da Cruz, que só de pensar no Senhor alucinava, mas agora, parafraseando o poeta, vem aí uma viração danada: nos EUA novos e velhos, mancos e atletas, deprimidos e histriónicos, feios e bonitos, trocaram a doce oxicodona pela velha e alquebrada heroína.
Obama, como sabemos, quer que toda a gente tenha acesso a saúde o mais barata possível; em simultâneo, desagrada-lhe manter uma legião de drogados legais, pelo que mandou apertar o controlo da prescrição de opiáceos legitimados pelas farmacêuticas. Parece boa ideia, não parece? Só que toda a boa ideia tem um problema: por norma é posta em prática por humanos, que é quando se torna em tragédia.
No caso, os antigos drogados legais americanos, que pacatamente adormeciam nos seus postos de trabalho aquietados pelos seus comprimidos, viram-se apiedados das suas sedas medicamente prescritas: não havia mais receitas para ninguém. Ao mesmo tempo, a marijuana, agora legal, tornou-se mais cara.
Os cartéis, gente informada, aumentaram a produção de heroína e, numa admirável demonstração de gestão de produto, aplicaram um marketing agressivo: puseram mais e mais passadores às portas das farmácias, vendendo heroína a quatro dólares a dose. Primeiro as velhinhas “snifavam”, depois, talvez por nostalgia, passaram para a agulha. As mortes por heroína aumentaram vertiginosamente. Lembram-se da década de 80? Tínhamos todos uma “t-shirt” de Michael Jordan porque os americanos as usavam. Não começámos a comer pizza por homenagem à madre língua latina — as porque a vimos nos Simpsons. O que acontece é que o português não resiste ao americano — pelo que mais dia menos dia a moda vai pegar por cá.
Eu, que tenho pavor a agulhas e um desvio do septo nasal que me torna um incapaz no uso de drogas duras, vou passar ao lado do revivalismo da heroína e registo apenas com penosa curiosidade a capacidade do ser humano em tornar SEMPRE uma ideia benévola numa tragédia tamanho Saltillo.
Pelo que, antes que as nossas avós desatem a chutar cavalo pelas esquinas e os Peste e Sida encetem uma digressão de regresso, rogo ao nosso governo que páre com esta chatice de controlar as receitas do povo, em que tanto se empenhou nos últimos tempos, e nos deixe drogarmo-nos legalmente. É que prefiro o “hipster” de drogas a curtir o mar calmo do Xanax da sua avó, e os Peste e Sida (quer dizer, a banda) mortos e enterrados, que o oposto.