C de Copa. C de Cromo, Carteirinha e Caderneta

“Tenho, falta, falta, tenho, falta” é uma lenga-lenga de recreio que vos deve ser familiar caso já se tenham entregue ao prazer bidimensional de colar homens adultos em quadradinhos com números — a versão futebolística dos livros de colorir, uma actividade dos 7 aos 77 abençoada pela Panini

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Não serei o primeiro a dizê-lo, mas tenho por hábito associar eventos da minha vida aos anos das grandes competições de futebol. O que é o mesmo que dizer que só existo de dois em dois anos: não me lembro do que fiz em 1999, mas no ano anterior gravei seis cassetes de vídeo com a cobertura que a SIC fez do Mundial de França e no seguinte sei que tive uma prova global de Ciências na segunda-feira imediatamente posterior aos dois golos do Nuno Gomes contra a Turquia. É como diz o adágio: o futebol é tanto um desporto em que 22 homens de calções correm atrás de uma bola como um violino é um cepo de madeira com uns fios de tripa — a minha mãe nunca há-de perceber.

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Não serei o primeiro a dizê-lo, mas tenho por hábito associar eventos da minha vida aos anos das grandes competições de futebol. O que é o mesmo que dizer que só existo de dois em dois anos: não me lembro do que fiz em 1999, mas no ano anterior gravei seis cassetes de vídeo com a cobertura que a SIC fez do Mundial de França e no seguinte sei que tive uma prova global de Ciências na segunda-feira imediatamente posterior aos dois golos do Nuno Gomes contra a Turquia. É como diz o adágio: o futebol é tanto um desporto em que 22 homens de calções correm atrás de uma bola como um violino é um cepo de madeira com uns fios de tripa — a minha mãe nunca há-de perceber.

Fora das quatro linhas poucas coisas terão a mesma ressonância universal do que uma caderneta de cromos da bola. As carteirinhas são, por norma, o primeiro ritual (por iniciativa própria) de uma criança recém-convertida — são também um dos mais duradouros, ao lado de frases míticas de recreio como “de quem é a bola?”, “faz jogo” ou “gordo, vai à baliza”. Todos os adeptos sabem qual foi a primeira caderneta que fizeram e têm memórias saudosas de alguns cromos em particular. Seja a figurinha de um craque ou de um perneta, de um tipo com um penteado/nome inacreditável (Medane e Bobó, respectivamente) ou simplesmente um cromo que custou muito a sair. Basta fazer uma pesquisa no Google para descobrir uma geração de adultos fascinados por Caccioli ou Alex Bach — é um daqueles fenómenos maravilhosos e inexplicáveis, como a igreja dos fiéis do Neno, o Tó Madeira ou a carreira internacional do Secretário. Adiante.

O último álbum que completei foi o do campeonato nacional de 1993/94. Está todo dobrado e coçado, mas conserva uma capa incrível, tão plástica quanto memorável: Jorge Couto e Veloso, literalmente gigantes, estilo Godzilla VS Mothra, a disputar uma bola num Jamor lotado. É, de longe, a caderneta que eu escolheria salvar num incêndio, quanto mais não seja porque não me vou cansar nunca de a) recordar João Repe, a mascote adolescente da Panini (imaginem o Rolo da Turma da Mónica desenhado com a mão esquerda), b) ler as pequenas biografias que acompanham todos os jogadores ou c) de admirar os emblemas dos grandes clubes europeus, nos spreads finais. Nesse mesmo ano ainda me atirei à colecção do campeonato do mundo dos EUA, mas nunca a terminei. Não voltei a colar um cromo de mundial até há pouco tempo apesar de, na prática, ter comprado cadernetas completas de mundiais anteriores, nomeadamente as de 1974 e 86 — curiosidade aleatória: o primeiro mundial com bolas 100% sintéticas).

Comecei, há coisa de um mês, a fazer a caderneta da Copa deste ano por um misto de acaso e simbolismo. Acaso porque ela veio, de oferta, com a compra de um jornal; simbolismo porque me apercebi, nesse domingo de Lima 2 – Olhanense 0, que não completava um álbum de futebol há 20 anos. E também, para ser sincero, porque um mundial no Brasil é um alinhamento particularmente feliz dos astros.

A primeira conclusão que tirei é que comprar cromos em adulto é infinitamente melhor do que em criança. Hoje em dia não preciso de chorar pelo troco do supermercado para comprar cromos, nem sequer de esperar pelo fim-de-semana para pedir as míticas dez carteirinhas. Aliás, esse princípio de revanchismo juvenil, de ajuste de contas com o passado, é aplicável a outras coisas como brinquedos (o castelo do He-Man, por exemplo) ou jogos de vídeo (comprar todos os Fifas só porque se pode). A segunda conclusão mais óbvia é que a ausência do recreio da escola implica que o triste momento em que o molho de repetidos precisa de um elástico seja consideravelmente antecipado — em compensação estou a pensar forrar a minha casa de banho só com os repetidos da Coreia do Sul.

Na primeira semana andei a testar diferentes papelarias até encontrar uma que me dá boas garantias no rácio caras novas/repetidas. Agora têm a minha exclusividade. Em troca, quando entro já não preciso de pedir nada, basta-me dizer “bom dia”, e ganhei confiança para usar o meu derradeiro truque anti-algoritmo da Panini: pedir carteirinhas alternadas. Um placebo ridículo que só serve para me amenizar a culpa de gastar demasiado dinheiro em rectângulos autocolantes. Fazer uma caderneta não sai barato, mas também é verdade que se trata de um investimento a longo prazo. Ninguém compra cromos por completismo puro, nem as cadernetas foram inventadas para viver esquecidas em estantes. A piada está em descobri-las alguns anos depois, como uma nota de 20 num casaco de Inverno.

Diria mesmo que uma caderneta de futebol, em particular a de um campeonato do mundo, tem tanta graça hoje como dez anos mais tarde. Num primeiro momento, sim, a diversão é exclusivamente ter todos os cromos e colá-los na perfeição, uma espécie de peddy paper solitário, mas parece-me evidente que em 2024 ainda vou querer saber de todos os pormenores inúteis, dos resultados da fase de apuramento aos novos equipamentos, passando pela mascote da prova. Os cromos de futebol têm essa característica ímpar de polaróide e as cadernetas são o equivalente futebolístico àquelas cápsulas que a NASA envia pelo universo com gravações de baleias a cantar e diagramas do corpo humano — só que o circuito é fechado: de mim para mim próprio, no futuro. Por exemplo: “Lembram-se quando, na qualificação para 2014, Portugal empatou dois jogos de qualificação com Israel, sofrendo quatro golos contra uma equipa que só foi a um mundial e que ainda por cima já competiu em provas da Oceânia?” E a competição em si nem sequer começou.

Este caderno de papel brilhante não é só uma caderneta, é um artefacto, um almanaque que ensina coisas novas de cada vez que é folheado. Ganhei vários queijinhos laranja no Trivial Pursuit graças à leitura compulsiva das páginas de abertura das cadernetas de mundiais, tradicionalmente dedicadas a uma retrospectiva histórica dos torneios anteriores. É verdade que não me serve de muito poder debitar factóides ou saber de cor o resultado de todas as finais de campeonatos do mundo, mas há pessoas que se dedicam a decorar letras dos Xutos e, que eu saiba, não há queijinho nenhum para isso.

Curiosamente, a caderneta do mundial deste ano não tem retro-enquadramento nenhum, o que é lastimável do ponto de vista pedagógico, mas há outras diferenças de estrutura interna. A do Euro 88, por exemplo, é a única da minha colecção em que o seleccionador nacional tem direito ao seu cromo — também há uma página dedicada aos árbitros perfeitamente dispensável —, ideia que terá sido descontinuada para evitar embaraços com chicotadas de última hora.

Mas não há nenhuma caderneta imune a improvisos. Samir Nasri, jogador do Manchester City, faz parte dessa indesejada elite de figurinhas já impressas que vão ver a Copa no sofá: a Panini bem que deu uma força, mas o seleccionador francês tinha outras ideias e agora, por culpa da namorada, o Nasrigate vai acabar em tribunal. Nos 17 rectângulos da selecção portuguesa, por outro lado, já não há Quaresma, mas estão lá William Carvalho (convocado), Josué e Antunes (não convocados). Quem não está em equipa nenhuma é o segundo guarda-redes, uma falta de respeito indesculpável pelos heróis improváveis. Há, ainda assim, clássicos que se mantêm: o cromo com o logo da federação de cada país, em gloriosa psicadélia holográfica, é obrigatório, bem como a divisão em metades de cada estádio (boa sorte em colar as duas da forma mais simétrica possível). Felizmente, o ofensivo costume de fazer cromos com dois jogadores para as selecções mais fracas (a Bolívia em 1994, por exemplo) foi abandonado.

Tinha pensado terminar esta crónica com a simples enumeração dos cromos que me faltam, mas admito que seria fastidioso (além de petulante). Vou tentar antes assim: no fundo, coleccionar cromos é como fazer um puzzle, mas a 60 cêntimos e a cinco peças de cada vez. E toda a gente louva as vantagens terapêuticas e cognitivas de fazer puzzles. Uma caderneta tem, ainda assim, a vantagem de ensinar as crianças a fazer trocos (por ser a primeira coisa que compram sozinhas) e de salvaguardar boa parte do seu encanto mesmo que incompleta. Já para não dizer que cheira incomparavelmente melhor. A minha mãe continua sem perceber.