A síndrome da senha

Na verdade, havia um sinal, sim, mas era o da hecatombe que se abatera sobre o sistema de senhas daquela repartição de finanças.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Na verdade, havia um sinal, sim, mas era o da hecatombe que se abatera sobre o sistema de senhas daquela repartição de finanças.

Tudo o que eu queria era alterar uma morada. Como parte da família emigrara, era necessário dar disso conhecimento à ministra das Finanças. Trata-se de procedimento de escassa complexidade. Ou pelo menos parecia, até surgir o primeiro impedimento: o Portal das Finanças – nome bom para um restaurante – não aceita códigos postais de além-fronteiras.

“É verdade, não dá”, confirmou uma atenciosa funcionária, quando telefonei para uma linha de apoio aos contribuintes em rota de colisão com a Internet. “Tem de ir a uma repartição de finanças”.

Aquilo que poderia ser facilmente realizado por via electrónica revestira-se da atemorizante necessidade de “ir às Finanças”. E “ir às Finanças” é um desastre completo em termos económicos, ambientais e de bem-estar, o trinómio da sustentabilidade. Envolve uma deslocação física, via de regra em veículo motorizado, compromete a produtividade do trabalho e submete o cidadão à angustiante “síndrome da senha”, que acelera os batimentos cardíacos à medida que o número chamado se aproxima do tirado, ou mais ainda quando alguém passa à frente dizendo: “É só para pedir uma informação”.

Naquela repartição em particular, a arritmia do contribuinte começa no momento em que é preciso carregar num botão para tirar a senha. Além de cinco opções, há uma boa dezena de papéis colados improvisadamente um pouco por todo o lado, com uma fascinante diversidade de complicações.

Num quadro informativo, na parte referente às senhas A está uma instrução para as senhas E. Ao lado da informação sobre as senhas E, estão esclarecimentos sobre o parcelamento do IMI. Um pouco mais acima, informa-se que a isenção de taxas moderadoras deve ser pedida através de um endereço na Internet de imediata memorização: http://min-saude.gov.pt/portal/conteudos/informacoes+uteis/taxas+moderadoras/requerimento+isencao.htm.

Felizmente, num aviso carregado de negritos encontrava-se o que se impunha para uma alteração de morada: “Tirar a senha B e informar a mesa 1 para ser atendido antes. Se esta mesa 1 estiver encerrada será atendido pela ordem normal da senha”. Isto é, a possibilidade de estar despachado mais cedo é inversamente proporcional ao número de vezes que o funcionário da mesa 1 vai à casa de banho.

Fui atendido, e bem, mas sem sucesso. O “sistema” estava em baixo e, além disso, era preciso uma autorização da minha mulher, que se encontrava a 2000 quilómetros de distância. Uma semana depois voltei às Finanças, com o documento solicitado. Tirei a senha B, fui até à mesa 1 e constatei que não só estava encerrada, como havia mais de uma centena de pessoas à espera para entregar o IRS, todas com gravíssimos sintomas de “síndrome da senha”. Olhei para o ecrã que deveria dar a indicação do tempo médio de espera, mas não funcionava. Desisti.

Em casa, enviei um email para todas os contactos que pareciam pertinentes no Portal das Finanças. E funcionou: responderam-me logo, bastava enviar a nova morada pela mesma via.

A coisa resolveu-se, mas foi preciso um dia de irritação com a Internet, um telefonema contraproducente, duas idas às Finanças, um papel que teve de viajar 2000 quilómetros e uma dezena de emails. Este é o problema número um da burocracia: gasta muita energia.