Nevoeiro

Calha sempre de estar ou ficar nevoeiro cerrado quando vou a Monção. Deve haver um alerta para quando passo acima de Viana do Castelo. O rio Minho põe-se a levantar pé e a esfumar as paisagens, noite dentro, para que não possa ver nada. Vou a Monção há sete anos, sempre para a biblioteca municipal, casarão belíssimo que fica como pequeno promontório, e nunca percebi nada daquele lugar. Todos me dizem que é lindo. Que passa o rio e que há Salvaterra do Minho do lado de lá. Dizem-me coisas das comidas, com nomes malcriados e tudo, e há vinho e uma mitologia abundante acerca das fugas a salto para uma Europa melhor. Acredito muito nas pessoas de Monção. Adio as provas mas acredito em tudo quanto me contam.

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Calha sempre de estar ou ficar nevoeiro cerrado quando vou a Monção. Deve haver um alerta para quando passo acima de Viana do Castelo. O rio Minho põe-se a levantar pé e a esfumar as paisagens, noite dentro, para que não possa ver nada. Vou a Monção há sete anos, sempre para a biblioteca municipal, casarão belíssimo que fica como pequeno promontório, e nunca percebi nada daquele lugar. Todos me dizem que é lindo. Que passa o rio e que há Salvaterra do Minho do lado de lá. Dizem-me coisas das comidas, com nomes malcriados e tudo, e há vinho e uma mitologia abundante acerca das fugas a salto para uma Europa melhor. Acredito muito nas pessoas de Monção. Adio as provas mas acredito em tudo quanto me contam.

Monção vive a fronteira. É um lugar de ininterrupta relação com os galegos que criaram o pregão simpático: menos mal que nos queda Portugal. Conta o alcaide de Salvaterra que ali se dizia, antigamente, que aquilo que viesse a esbracejar no rio era desimportante. O que esbracejava no rio seria um cão ou um português. A expressão era assim: não importa, é um cão ou um português. Por outro lado, em Monção rogava-se uma praga a alguém desejando-lhe que caísse em mãos galegas. Diz-se ainda hoje que nos dias de maior frio muitos galegos terão morrido. Mortos, os galegos passam a assombrar a vida dos portugueses da raia.

Há uma ilha no meio do rio que pode ser portuguesa ou espanhola. A Ilha Grande, em que os galegos põem mais pé, cultivam, andam a vendê-la a um privado qualquer, mas que talvez seja portuguesa de Monção. Alguém me contava que era um modo de cortar o rio. Contava isso: serve para separar a água, é uma vontade que o leito tem de espreitar acima do curso. Perguntei se era preciso guerrear os galegos para ficarmos com a ilha. O senhor disse-me que não. Que os galegos de Salvaterra eram irmãos muito remediados, com gosto os monçanenses lhes dariam mais do que uma ilha se pudessem.

Afinal, os de Monção e os de Salvaterra valem-se mutuamente. Foi o que percebi de óbvio. Porque, com a auto-estrada a puxar os viajantes para fora das localidades, e com o longe que ficam os respectivos países daquele Minho tão extremo, as duas pequenas populações estão substancialmente entregues ao ofício de se acompanharem.

Podemos hoje evocar os fervorosos escritos de João Verde na defesa de Monção, a terra que endeusava, mas isso agora, mais do que nunca, vira símbolo de um bairrismo salutar. Uma espécie de defesa clubística para deitar sal no entusiasmo das pessoas. De alguma forma, Monção e Salvaterra são duas faces de uma mesma moeda. Com as suas picardias e comunhões, completam-se tanto quanto possível no que lhes pode faltar e no que mais ninguém ali lhes leva.

Entretanto, a verdade é que, entre histórias e belezas garantidas, eu chego a Monção com o nevoeiro. Faço o mesmo percurso de sempre, procuro não me perder e juro voltar um dia, à luz do sol, numa Primavera ou Verão, para corrigir ideias e vistas.

Costumo dizer que chego ali a puxar o carro por uma corda. A mão no vazio invisível para descobrir o caminho entre o cerrado nevoeiro. Isto porque vejo apenas o que fica debaixo da luz dos candeeiros. Ao pé da biblioteca há o novo teatro, e há um jardim, num largo bonito, onde quase sempre estaciono. Uma vez, cheguei a tempo de tomar uma garrafa de água. Foi há anos. A senhora perguntava-me de onde eu vinha. Respondi: Vila do Conde. Ela sorriu. Ofereceu-me a água. Tinha um orgulho qualquer na minha visita. E eu perguntei porque raio estava sempre tudo debaixo daquele manto. Ela disse que não é costume. Nevoeiro é coisa de Paredes de Coura, coitados. Disse assim: coitados. Depois, contou-me que tinha uma prima, uma tia, talvez apenas uma amiga, em Coura, e que lhe telefonava a cada ano, para desejar um feliz Natal e um próspero Ano Novo.

Hoje, sinto-me primo de alguém em Monção, com o mesmo ritual de telefonar uma vez por ano a desejar coisas boas. Cria-me uma melancolia esquisita. Como ter um país que nos escapa, não por ser demasiado grande mas por o deixarmos demasiado recôndito. Coitados são os que não o aproveitam. Os que não o conhecem. Coitado de mim, que em anos não passei do nevoeiro. Marquei na minha agenda: urgente visita de Primavera a Monção. Ver Salvaterra, inspeccionar a Ilha Grande, saber acerca dos portugueses que esbracejavam rio fora. Falar com a Teresinha, com a Susana e com a Paula. Falar com toda a gente.