Queria ser pássaro

Foi, muito provavelmente, o último dos génios livres, rebeldes e indisciplinados do nosso futebol. Esta é uma ficção inspirada em factos verídicos escrita por Bruno Vieira Amaral, autor do romance As Primeiras Coisas (Quetzal)

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O Lavradio, terra outrora rodeada de vinhedos e salinas, fértil, generosa, é uma pequena vila que poderá facilmente ser confundida com um dormitório suburbano sem história, qualidade metafísica, ou aquilo a que chamamos a alma dos lugares, uma ressonância. Nasci e cresci perto do Lavradio, mas só frequentei a vila já na minha adolescência quando foi inaugurado, perto dos terrenos industriais, o hipermercado Feira Nova e as suas quatro salas de cinema. Em finais de Julho, terei ido às festas em honra de Santa Margarida, no período de apatia estival em que procurávamos a animação fora do bairro, as aventuras e os amores que ali escasseavam. Em menos de nada, gastávamos as poucas moedas em fichas de carrinhos de choque, observávamos as miúdas, falhávamos manobras e regressávamos a pé para casa, atravessando temerários a linha de comboio, de volta ao nosso ermo, à espera que aquele Verão acabasse. Em tempo de aulas, íamos com frequência ao pontão do parque, bebíamos vermute morno em copos vazios de iogurte, contávamos piadas, arriscávamos filosofias, ríamo-nos dos nossos insucessos, olhávamos em silêncio os sapais, respirávamos a dolência que deles emanava. Numa dessas tardes, levámos uma bola de futebol. Com a minha inépcia habitual, atirei-a para a água. O Guedes nem pensou: descalçou os ténis, despiu as calças, a camisola e, num mergulho perfeito, desapareceu nas águas turvas. Durante alguns segundos ficámos a olhar para o rio, à espera de um sinal. Já nos preparávamos para pedir ajuda quando, perto da bola que se afastava, emergiu formidável o Guedes, dorso portentoso de Neptuno, sorriso de criança grande, bola à frente do nariz como uma foca do jardim zoológico. Apesar destes contactos esporádicos, o Lavradio era para nós uma terra sem significado. Um dos meus amigos, mago do futebol de salão e mentiroso condecorado, disse-nos uma vez que tinha recebido das mãos do Chalana o prémio de melhor jogador num torneio. “Tangas.”

10 de Fevereiro de 1959 foi Terça-Feira Gorda. O país ouvia incrédulo o estrondo do Carnaval do Estoril, com a cintilante presença do “grande” Maurice Chevalier e as criações do conceituado Pierre Balmain e os seus manequins. Outras celebridades passearam pela Linha dos aristocratas internacionais, dos monarcas exilados, do dinheiro antigo. Os jornais anunciavam para breve a actuação de Luis Mariano, vedeta internacional da canção, em concerto no cinema Império, na altura casa de ídolos de carne e osso e celulóide, onde até Sua Excelência o Embaixador de Espanha e Excelentíssima Esposa se deslocariam. Prometiam-se também espectáculos de alto gabarito no Coliseu com os Flying Palacios, irmãos mexicanos considerados os “mais impressionantes voadores do mundo”, e Atilina, “extraordinária funâmbula”. Nessa terça-feira de excessos em que as misérias faziam questão de exibir os dentes estragados, Sporting e Barreirense encontraram-se num jogo solidário a favor da família do malogrado árbitro Aureliano Fernandes. Em Setúbal, com o estádio dos Arcos lotado, a equipa da Margem Sul venceu as reservas leoninas com golos de Lino e Oñoro, exemplares da já então decantada “escola do Barreiro”. Enquanto os foliões se divertiam com as cegadas nas ruas operárias, os bêbados pousavam as cabeças contundidas nas mesas das tabernas e nascia no Barreiro a que viria a ser a estrela mais brilhante dessa galáxia suburbana.

Quando Fernando Chalana ainda era criança, a família mudou-se do Barreiro para o Lavradio. A distância é curta, mas convém não menosprezar a força das mitologias identitárias das pequenas comunidades. Anos mais tarde, ao falarem-lhe do célebre “grupo do Barreiro”, Chalana haveria de contrapor de imediato: “Só eu é que era do Barreiro, os outros eram da Moita, de Sarilhos, de Santo António.” Naquelas ruas, então de terra batida e nos baldios em redor, os miúdos jogavam à bola até anoitecer ou até que a Guarda viesse e os obrigasse a recolher. Fernando nunca largava a bola. Na escola nem era dos piores. Só se recorda de ter levado reguadas uma vez. E por causa de um gato. Encontrou-o perto do Beco D. António. Dizem que os gatos são senhores do seu nariz, que não se dão, mas ele achou o bicho desamparado, perdido, detectou entre os dois uma afinidade delicada. As reguadas doeram-lhe mais porque foram inglórias: o gato fugiu. Nessa tarde, depois da escola, ainda o procurou pelas ruas do Lavradio, na D. Pedro II, na Almirante Reis, bichaninho, bichaninho. Nada. Nunca mais o viu.

Torpor de fim de tarde. A angústia de se saber que está na hora de ir para casa quando ainda se quer tentar a última finta, outro golo, naquela rua em que só há um candeeiro e mal dá para ver a bola. “Já são horas, Fernando. Olha que vem aí o feijão-verde.” Ele não ouve. Continua. Já não há mais ninguém. Só ele e a bola, cúmplices, a luz débil do candeeiro, um homem que, antes de entrar em casa, bate com as botas no tapete, assobia, um cão, o cheiro a lodo, o enxofre das fábricas, finta um adversário que não está lá, e depois outro, atira para uma baliza que são duas pedras desiguais no chão, e será sempre assim, mesmo anos mais tarde, naquele fim de tarde mediterrânico, em Marselha, uma maré de calor e saudade sobe do porto e vence as bancadas, silencia as vozes, apaga os adversários, está outra vez sozinho, com a bola, nas ruas do Lavradio, noutro crepúsculo que é sempre o mesmo, num estádio que é sempre uma estreita faixa de pó numa vila operária, sob os holofotes que iluminam tão pouco como aquele candeeiro mortiço da sua infância. Os adversários não estão lá. Ele, na verdade, também não está lá. Está sempre noutro lugar, mais à frente, mais longe.

A mãe dizia-lhe: “Estuda, Fernando, ou ainda vais prá guerra.” Ele encolhia os ombros: “Não se preocupe, um dia vou para o Benfica ou para o Sporting e não me deixam ir para a guerra.” Dizia-o com a certeza matemática das coisas evidentes, sem arrogância, como se conferisse os centavos do troco ou fizesse uma conta de somar na ardósia. Estava tão certo de que aconteceria assim que nem a dor de ter sido recusado pela CUF o desanimou. “Políticas. Ficavam os filhos dos importantes da Companhia.” Todo o génio precisa da afronta de uma rejeição, de um obstáculo menor que, mais do que exaltação, sirva para denunciar a miopia da mediocridade perante o talento puro. Mas era uma rejeição dolorosa. Nas tardes de domingo, o padrinho levara-o pela mão ao Alfredo da Silva, onde via os jogos da CUF no peão, maravilhado, a mastigar tremoços ou amendoins, imaginando-se um dia a vestir aquela camisola verde, a ouvir o seu nome cantado pelo povo. Ali. E agora escorraçavam-no, a ele, que já estava habituado à admiração alheia, ao espanto que intuía nas bancadas exíguas dos campos de futebol de salão — quem o via jogar não se esquecia daquele miúdo: “Alto lá! No campo do 31 de Janeiro, dos Celtas, era cada finta, os outros bem lhe davam sarrafada, mas ele fazia assim e assim e deixava-os pregados ao chão, o pessoal nem acreditava, parecia de borracha.” Afinal, não prestava, não servia. Talvez essa rejeição original tenha deixado no coração do miúdo uma cratera que nem todo o reconhecimento que os adeptos lhe haveriam de tributar, nem todos os epítetos inventados pela imprensa, nem o seu nome gritado por milhares de vozes, semana após semana, poderiam preencher. Queria ser desejado, que implorassem. Nunca mais queria ouvir “não serve”. Nunca mais queria ser rejeitado.

O Barreirense, a equipa que no dia em que Chalana nasceu tinha derrotado o Sporting, não o rejeitou. E após meia dúzia de jogos com a camisola alvi-rubra já toda a gente falava do “miúdo do Barreiro”. Coluna, o monstro sagrado, o glorioso capitão, céptico das promessas que todos os meses se anunciavam, foi vê-lo a jogar para confirmar se o que se dizia tinha fundamento. Precisou de poucos minutos. O Benfica pagou 750 contos ao Barreirense por um juvenil. O pai de Chalana recebeu 20. Queixou-se. “Isto não é assim.” O dinheiro a complicar o que é simples. Em Março de 76, com 17 anos, estreou-se na equipa principal. O mais novo de sempre. Jogo contra o Farense, 3-0. Golos de Nené e de Jordão. Os dois assobiados pelo público, para se ter ideia do que era o tribunal da Luz e as suas exigências romanas, imperiais. Ao intervalo, Toni ficou no balneário. Mário Wilson, ar de sábio oriental, comandante dos mares, disse ao miúdo que ia entrar. Já não ouviu mais nada. Nenhuma indicação, nenhum incentivo, nenhum conselho. Águia ao peito, chuteiras na relva, sol envergonhado de um Inverno quase no fim. No Diário de Lisboa, Neves de Sousa escreveu que “o miúdo (muito dinheiro no bolso já aos 17 anos…) cumpriu e esteve como peixe na água”. Nessa tarde, os juízes insaciáveis da arena da Luz aprenderam a cantar o nome do miúdo. Dia perfeito, peixe na água. Antes das sombras.

Meia hora para o jogo começar. Enquanto os outros aquecem, ele permanece junto da baliza do topo sul. Estatura baixa, olhar vazio. Quem da bancada central o vê a passear por ali como se estivesse a medir a relva, a confirmar se está bem tratada, pode pensar que é o tratador. Não tem a aura do génio. Calado. Metido para dentro, solidão de monge, saudades da bola, saudades do jogo começar, vontade de dizer tudo naqueles 30 metros onde vive e sonha e fala, onde expulsa a golpes de engenho o silêncio que não cabe dentro de si, a mágoa inefável de não ser tudo. Tem 17 anos. Acredita que terá sempre 17 anos e continuará a deixar os adversários caídos, a levar a bola no pé, cruzamento, parábola perfeita, golo, glória, é tão simples a vida, bola novamente no pé, domesticada, mansa, enfeitiçada, cruzamento, golo, glória, o mesmo refrão repetido ao sol de um domingo eterno, o murmúrio geral que antecipa com prazer, com erotismo, o momento em que a bola lhe chega aos pés e se rende, esse segundo, essa fracção de tempo é o momento por que há muito esperam, o momento que aguardam há séculos, em que tudo se interrompe e a felicidade ainda é possível. Adultos suspensos nesse lapso de infância e fantasia para onde o pé dele os arrasta levantam-se, excitados, eufóricos, crianças prontas a acreditar que nunca ninguém morrerá e ainda é domingo. Sim, antes das sombras.

Tanto tempo para ganhar coragem, para se decidir a falar com o presidente, o senhor presidente, e agora, afundado na poltrona de pele à porta do gabinete presidencial, na sede da Jardim Regedor onde anos antes assinara o primeiro contrato com o Benfica, só tem vontade de dormir, de desaparecer, que a hora do próximo jogo chegue depressa. Ficava feliz com o apoio dos adeptos. Aqui, voltava a ser mendigo, a pedinchar migalhas de afecto e de dinheiro, voltava a ser o miúdo rejeitado pelos senhores da CUF. Ainda agora, a pé dos Restauradores, as pessoas saudavam-no, “és o maior”, “és o Chalana”, “olhó Chalana”. À volta dele diziam-lhe que o clube tinha de lhe pagar mais, “mais, têm de te pagar mais, tu és o Chalana, foda-se”, e é verdade, ele é o Chalana, o único, e têm de lhe pagar mais porque há propostas do Sporting, do Boavista, do Marítimo, do Braga, todos lhe oferecem mais, o presidente não está a ver bem as coisas, tem de lhe aumentar o ordenado, é isso, mas sobrevém o desânimo, uma lassidão irresistível ao pensar nas palavras que terá de dizer, no tom assertivo, até arrogante, “Eu sou o Chalana.” Suspira. Perde o alento.

Então o presidente manda-o entrar. Foi uma espera táctica, sabe que já lhe esfrangalhou os nervos, é homem batido nos negócios, faz-se acompanhar por um tipo qualquer, decorativo, figura de segunda ordem na hierarquia do clube, um advogado, só para intimidar. Ele estava à espera que a conversa com o presidente fosse a sós, assim ainda é mais difícil, pedir dinheiro à frente de um gajo qualquer. Vem de mãos nos bolsos, “Então, Fernando, queres falar comigo?”, ele gostava que o outro saísse, mas sabe que não vai pedir, então imagina que o outro não está ali, fecha os olhos e faz de conta que aquela figura é um animal embalsamado, um vulto, e começa a cantilena decorada, tem propostas, são todas melhores que as do Benfica, muito dinheiro mesmo e, com todo o respeito, o presidente sabe que a carreira de um jogador é... “Fernando, 50 contos, não te posso dar mais do que isso, cinquenta contos, se não quiseres, a porta por onde entraste é a mesma por onde podes sair”, mãos nos bolsos, enterradas até ao fundo, caralho, sente uma dor no pescoço, ao longo da coluna, é da tensão, está pedra, ele que é pássaro — “peixe na água, escreveu o Neves de Sousa, peixe na água” — agora é pedra. O presidente põe o ar sério de adulto a repreender um garoto, o rosto hierático do poder. E o Fernando, pobre, percebe que ali dentro ninguém lhe pode valer, aqui no escritório não és o Chalana, és um maltrapilho, um falso ídolo com os teus truques de feira. Aqui ajoelhas-te, deves obediência ao Deus Dinheiro, aqui ninguém irá gritar pelo teu nome, aqui ninguém sabe o herói que tu és, aqui o teu talento vale 50 contos, 50 contos, “é pegar ou largar, Fernando”. Sai, desce as escadas, só respira quando chega à rua, aliviado, 50 contos, que se foda: “Chalana, és o maior!”

Não me esqueço daquela tarde em que me esforcei para acompanhar a passada do meu avô. Tinha seis anos. Era Verão. Portugal estava nas meias-finais do Campeonato da Europa. Um grupo improvável, fracturado, com a originalidade de quatro treinadores, arriscava-se a ir pela primeira vez à final de uma grande competição. Tinham lá chegado graças a um desses ardis de futebol de rua. No jogo decisivo para o apuramento, no Estádio Nacional, precisávamos de ganhar à poderosa equipa da URSS. Entre os nossos, estava um relutante Chalana, que só foi jogar depois de dois funcionários da federação o terem ido buscar. Amuava. Fora e dentro de campo. “O Pacheco só passava a bola para a direita.” A ética do trabalho a ignorar o brilho do génio. Os carregadores de piano têm estas manias. Chalana alheou-se. Queria lá saber. Camisola para fora dos calções, desalinhado, infantil. Era no tempo em que a disciplina táctica ainda não era uma religião, sobrava espaço para foragidos e indisciplinados. Farto de estar afastado da bola — a única coisa que lhe interessava em todo aquele negócio — Chalana esqueceu as birras e os amuos e recuou até ao meio-campo para raptar a sabina, acelerou, passou por um soviético, depois por outro e o terceiro, que já ficava para trás, esticou a perna e, no limite da grande área, tocou em Chalana que mergulhou com toda a arte e engenho que separa os artistas dos pontapeadores de bola. Priii! Penálti! Golo! Portugal ganhou e apurou-se para o Euro-84. Estavam apenas a 90 minutos da glória de uma final. O meu avô não queria perder esse momento histórico. Voava. Não me lembro de ver o jogo, mas, na ressaca da derrota, o meu avô disse-me que não havia outro como o Chalana: dois cruzamentos dele para dois golos do Jordão. Nunca mais esqueci a imagem, a pensar na simetria perfeita do extremo que cruza e do avançado que finaliza e de saber que a beleza maior estava no gesto daquele que oferece o golo, que oferece o ser amado para o golpe de misericórdia. Há mais alegria em dar do que em receber, disse o sábio.

Em Bordéus acolheram-no como a estrela que era, o Chalanix que deixara um “rasto de oiro” nos relvados franceses. Curiosamente, vinha na esteira da radiosa Anabela, monumento de platina, como se fosse ela a luz e Chalana, de brinquinho na orelha, o insecto condenado a perseguir a claridade, o brilho. “Diziam que ela é que mandava, mas quem mandava era eu, eu é que sempre mandei”, dirá ele depois, num protesto tardio, inútil, quando Anabela não for mais do que uma memória extravagante, uma curiosidade fantasmagórica, como o são todas as famas breves. Vieram então as lesões, uma atrás de outra, sem explicação, sem sentido e aos olhos da pátria de Chauvin o empossado herói começava a parecer-se com a caricatura acabada e definitiva dos seus compatriotas emigrantes, as concierges e os homens dos chantiers, baixote, bigodudo, preguiçoso, sentado no banco, deitado na marquesa, propenso a azares e a saudades. Pela primeira vez longe de casa, longe a sério, sem poder respirar nos relvados, olhava para as ruas e as placas, os toldos e os cartazes, as pontes sobre o Garona e as brasseries procurando ver nesse conjunto de peças estrangeiras um lugar acolhedor, um simulacro de lar. Mas não dava. Queria voltar para Portugal, para o Benfica, que era tudo, e o presidente, sempre os presidentes, a ameaçá-lo: “Tem de ser profissional, tem um contrato para cumprir.” Exilado, estranho a si mesmo, a entregar-se a medicinas alternativas, aos mais reputados parapsicólogos da Aquitânia, a bruxas domiciliares que purificavam a casa com defumações de incenso e que à saída confessavam que nunca tinham visto nada assim, e Anabela de um lado para o outro, neurótica, cigarro na boca, a dizer que aquela merda era só inveja, puta que os pariu a todos, e o Fernando só encontrou refúgio nos pombos, calma, sossego, a dar-lhes ração com pó de levedura de cerveja, esquecido das agruras, o apito na boca, priii…priii…anda! Anda! A felicidade possível entre tratamentos, o desejo de voltar para casa, para o Benfica, que era tudo e onde ele era tudo, os adeptos a gritar pelo nome dele. Até que num dia inevitável aconteceu e Chalana regressou a casa. Como um pombo.

Tenho bem presente na memória o dia em que Chalana voltou a pisar o relvado do Estádio da Luz com a camisola do Benfica. O presidente vendera-o para fechar o Terceiro Anel. E fechou. Magia por conchas, alma por pedra, como só os grandes homens de negócios sabem fazer. E a 17 de Outubro de 1987, o filho pródigo veio para que o Terceiro Anel, fechado, o aplaudisse. Ouvi o relato desse jogo, vi as imagens na televisão, estranhei o ar de Lázaro ressuscitado, aturdido, numa festa de cinzas, engolido por uma tristeza de circo desmontado, na solidão do grande anfiteatro, maior do que nunca, e o artista já sem o fogo do génio, flying Palacio sem asas, Atilina, funâmbula embriagada. Ao aplaudirem aquele homem, a quem o treinador deixou “brincar oito minutinhos com a esferinha”, os adeptos estavam a fazer o luto de um tempo que findara no dia em que, por 350 mil contos, o venderam ao Bordéus. Aplaudiram de desencanto, saudades. Aclamaram o rapaz de 17 anos que um dia os espantara, “pensava que ia ter 17 anos para sempre”, aplaudiram-no sentados no cimento frio das bancadas, lá do alto, da maravilha erguida pela engenharia que os bulldozers haveriam de derrubar anos depois, reduzindo a escombros o santuário, aplaudiram a memória que guardavam dos 17 anos daquele remendo que agora regressava para uma extinção furtiva. Os últimos anos foram anos sem história. Clandestinos. Em Maio de 1990, Chalana fez a última aparição no seu estádio e Neves de Sousa escreveu-lhe o mais belo e inconsciente requiem. Quem o ler agora sente em cada palavra o tom de despedida, como se estivesse a ser narrado o derradeiro e esforçado voo de uma ave moribunda que cremos imortal: “Um óptimo renascimento de Fernando Chalana, o meu pequeno genial que, mal entrou a render Fonseca, espécie de faz-tudo obrigatório, colocado pelo mestre sueco em triplas funções (médio, extremo e adjunto de ponta de lança) subiu até à cúpula do tribunal do Terceiro Anel.” Chalana, já não tens 17 anos.

Quando tudo acabou, esteve quatro anos sem ir a um estádio.

“Prriii...prriii...Anda! Anda!” Apito ao pescoço, fato-macaco da Fisipe, olhos no céu a ver o desenho do voo dos pássaros, não se perdem, sabem sempre onde estão, só regressam quando o dono tira a bandeira. Tomam banho no depósito cheio de água, “ficam aí a chafurdar”, voltam para o pombal. Antigamente tinha-os em cacifos individuais, mas isso dava muito trabalho e ele está cansado, falta-lhe a paciência. Agora é voar aos poleiros. Só os reprodutores, ali em baixo, estão em cacifos. Aquele está velho, tem 17 anos, repete, 17 anos, ele próprio pensou que teria 17 anos para sempre, que enquanto jogasse teria 17 anos e as tardes de domingo seriam todas dele. O pombo, de envergadura impressionante, pomposo, chegou a ganhar uma anilha de ouro. Sorri. O tempo passa. Ontem foi dia de competição. Hoje têm direito a chá e mel. No defeso, quando é época da mudança da pena, dá-lhes óleo de fígado de bacalhau. São finos, os bichos, “e inteligentes comó raio”, reconhecem toda a gente. Vale a pena? Vale. Muito. Há quem leve isto da competição a peito, zangas, ameaças, malta que deixa de se falar. Ele gosta do convívio, sim, quando se sentam aqui no pombal, nos concursos, a tarde toda nos petiscos com a malta, na paródia, à espera que cheguem os primeiros pombos largados em Espanha de madrugada. Mas do que gosta mesmo é de ver estes bichos. É capaz de ficar a olhar para eles durante horas, pacificado, quase feliz. O sossego, o entendimento sereno, a harmonia. Nas piores alturas da vida, nos anos em Bordéus e logo depois de ter deixado o futebol, quando nem sequer tinha dinheiro para pagar água e luz, quando os amigos de ocasião desapareceram porque o Chalana já não era o Chalana, tudo o que tinha era os pombos, bálsamo espiritual. O fascínio pela inteligência dos animais, largados a centenas de quilómetros de casa e, ao fim da tarde, regressados ao pombal, a certeza de que, ao vê-los chegar, a terra ainda é um lugar para os homens. Haverá nisto uma mensagem poderosa, uma ligação. Não consegue explicar. Quando o indagam sobre essa mania dos pombos, só pode responder o mesmo de quando lhe perguntavam, à procura do segredo dos seus truques, ansiosos por reduzir a factos mensuráveis as coisas impossíveis que fazia em campo, de onde vinham aquelas fintas: “Não sei.”

Não há mais nada, só pombos e silêncio, acabou tudo, a gente no estádio a gritar por ele, o Benfica e o casamento, os jornalistas e os fotógrafos, os treinos e as bruxas, os autógrafos e as entrevistas. Os miúdos já não sabem quem foi o Chalana, sabem quem é aquele tipo de bigode patusco, cara cómica de boneco animado, mas não sabem quem foi o Chalana. Já ninguém se lembra daquela tarde, em Aveiro, em que foi de um lado ao outro do campo, bola colada ao pé, slalom de serpente, e marcou golo. Hão-de falar-lhe sempre do Europeu, mas é como se ninguém tivesse visto aquele golo, o melhor da carreira. Agora tudo isso acabou. Resta-lhe a lealdade dos bichos, “nunca me viraram as costas”. Assobia, baixa a bandeira e eles voltam. É bom não ter de falar para que o percebam, “não sei”, queria ser pássaro, e foi muitas vezes, não ter de explicar, ser apenas, voar, como é que ele faz aquelas coisas, “não sei”, que necessidade há de explicar tudo, um cavalo a galope no campo, um pássaro que regressa? Basta dizer que é belo e acontece. Simples. Como peixe na água.

Na década de 1960, quando o Chalana era um miúdo, a realidade não era muito diferente da que Caetano Beirão da Veiga descrevera 30 anos antes: “O Barreiro já é outro pelo aspecto, pelo movimento, pelas vibrações das ruas, pelo ritmo nervoso dos que trabalham, pelas altas chaminés que fumegam dia e noite, pelo odor horrível das emanações químicas que se espargem no ar, pelas aspirações sociais impetuosas de centenas de operários que se concentram neste colosso industrial permanentemente arfando.” Hoje, deste colosso, tal como do original que era maravilha do mundo, pouco mais resta do que a memória e a carcaça de mamute mecânico. Domingo de manhã, estaciono o carro e percorro as ruas na companhia do meu filho. Tiramos fotografias. Procuro a corrente invisível que me ligue à infância daquele homem. O meu filho repara no silêncio: “Não se ouve nada.” A pressa e a agitação cessaram. Sente-se a estranha quietude dos lugares amaldiçoados, a desolação do ferro, a ausência de vida humana para lá dos muros. As escassas unidades ainda em laboração lançam para o ar fios tímidos de fumo que fazem sorrir quem ainda se lembra das golfadas arrogantes e mortais expelidas pelas chaminés de outros tempos. Lembram o único dente na boca de um ancião, o que lhe empresta um involuntário efeito cómico e que o impede de aceder à dignidade do abandono completo. Hoje, neste lugar, restam as cinzas de uma fogueira que arrefece. Passamos ao largo de campos de futebol de cinco, abandonados, decrépitos. Vazios ao domingo de manhã. Um está em obras, andaimes desmontados no meio-campo, latas de tinta junto ao poste de uma das balizas. Ainda há esperança. Será que o Chalana jogou aqui? É possível. O campo foi inaugurado em 1970. Sim, é possível. Mas não consigo explicar ao meu filho o fascínio de pisar estes terrenos sagrados e esquecidos, os despojos de uma civilização arruinada. Talvez um dia ele perceba o privilégio de, numa manhã cinzenta de domingo, termos passeado os dois por aqui, rente aos campos desertos da vila do Lavradio, onde há muitos anos começou a jogar aquele miúdo, o Chalana, extraordinário funâmbulo da bola.

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