Calimero, o rebelde

Os calimeros, com as suas queixas e inconformismo, talvez saibam algo importante: que os seres humanos que não se indignam com o mundo em que vivem são apenas escravos, e que só pela queixa é possível corrigir as injustiças

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Reuters/Rafael Marchante

Lembro-me perfeitamente do que aprendi na praxe. Uma interessante música que envolvia a abelha Maia, o pinto Calimero e eventuais práticas sodomitas. Creio bem que era o auge do processo educativo e integrador da praxe da altura: colocar rapazes e raparigas de 18 anos a cantar músicas que misturavam heróis de infância e actos adultos.

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Lembro-me perfeitamente do que aprendi na praxe. Uma interessante música que envolvia a abelha Maia, o pinto Calimero e eventuais práticas sodomitas. Creio bem que era o auge do processo educativo e integrador da praxe da altura: colocar rapazes e raparigas de 18 anos a cantar músicas que misturavam heróis de infância e actos adultos.

Mas sempre me intrigou a persistência na memória destes heróis de desenhos animados. O Calimero, pelo menos, que surgiu nos anos 70 e perdurou como série de animação até ao início dos anos 90, parece ter-se tornado um ícone da sociedade portuguesa. Só no último ano, diz-me o Google, a personagem foi comparada a um primeiro-ministro, a uma ministra das Finanças, a um líder da oposição, a um clube de futebol, a todos os licenciados portugueses no desemprego, aos portugueses em geral e a praticamente qualquer pessoa que se queixe de alguma coisa.

Na minha memória, a personagem inventada por Nino e Toni Pagot era um pintainho negro, doce e inocente, nascido numa família de galinhas brancas, que era a personagem mais pequena e indefesa do seu mundo mas a quem a fragilidade não impedia de se queixar da injustiça da sua posição. Era o símbolo do ingénuo, do inconformado, do rebelde, que se pergunta e protesta porque é que o mundo tem de ser assim, porque na sua mente guarda uma imagem mais bela do que esse mundo pode ser. E talvez por isso se tenha tornado memorável. O mais próximo que lhe conheço é Michael Kohlhaas, a personagem de Heinrich von Kleist que se revoltava e punha a Alemanha a ferro e fogo porque os poderosos desdenhavam das suas queixas de injustiça. Na altura chamaram-lhe louco e bandido, hoje talvez lhe chamassem Calimero.

Mas Kleist escrevia em tempos românticos e ingénuos, e nós vivemos em tempos cínicos. O cinismo que o publicitário Eduardo Salles ilustra genialmente no seu blogue, e que se traduz na atitude de saber que o mundo não funciona, mas conformarmo-nos a ele na esperança de conseguir algumas migalhas. E o cínico despreza invarialmente os calimeros por não se terem habituado a ser oportunistas, tal como ele próprio.

Só que, no fim de tudo, os calimeros, com as suas queixas e inconformismo, talvez saibam também algo importante: que os seres humanos que não se queixam e não se indignam com o mundo em que vivem são apenas escravos, e que só pela queixa, pela expressão do sofrimento, é possível corrigir as injustiças e mudar o mundo para melhor. Ou, pelo menos, ficar com a abelha Maia.