Doping: a questão filosófica

O que deve ser considerado doping? Deve o doping ser proibido?

Os casos do ciclismo têm merecido especial destaque, uma vez que surgiram confissões de ciclistas vencedores que conseguiram escapar à detecção nos controlos anti-doping (o que põe em causa a sua eficácia). Isso corrobora a ideia de que a “ciência” do doping está sempre à frente da “ciência” da detecção e de que a implantação do doping é, provavelmente, muito mais generalizada do que os números da detecção permitem supor. Tendo esta realidade como pano de fundo, duas questões levantam-se: o que deve ser considerado doping? Deve o doping ser proibido?

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Os casos do ciclismo têm merecido especial destaque, uma vez que surgiram confissões de ciclistas vencedores que conseguiram escapar à detecção nos controlos anti-doping (o que põe em causa a sua eficácia). Isso corrobora a ideia de que a “ciência” do doping está sempre à frente da “ciência” da detecção e de que a implantação do doping é, provavelmente, muito mais generalizada do que os números da detecção permitem supor. Tendo esta realidade como pano de fundo, duas questões levantam-se: o que deve ser considerado doping? Deve o doping ser proibido?

Uma tentativa de resposta pronta a estas questões parece simples: o doping é o conjunto daquelas substâncias externas que produzem um aumento artificial do desempenho atlético; e devem ser proibidas porque desvirtuam a competição, o mérito e podem causar danos a médio e longo prazo na saúde dos atletas. Porém, uma análise mais cuidada às perguntas não nos permite ser tão lineares. Na realidade, as respostas não são fáceis e exigem uma análise filosófica. 

Primeiro, a classificação de algo como doping está longe de ser inequívoca (não é por acaso que a lista das substâncias proibidas está em constante mutação, com entradas e saídas de novos e velhos produtos). Depois, na definição de doping entram as ideias de “aumento de rendimento”, “artificial” e “prejudicial para a saúde”. Porém, nenhum desses atributos é exclusivo do doping. O plano alimentar de um atleta está desenhado de forma a maximizar a sua performance e nesse plano alimentar são incluídas substâncias manipuladas artificialmente, como suplementos proteicos ou complexos multivitamínicos. A metodologia do treino é também uma forma artificial de melhorar a performance do atleta e mesmo os equipamentos (ex. sapatilhas, fatos de banho ou raquetes) também condicionam o desempenho. Se pensarmos nos efeitos secundários, também teremos dificuldades. O desporto profissional, é sabido, faz mal à saúde e origina problemas, a médio e longo prazo, devido ao excesso de esforço a que os competidores submetem a sua “máquina” – ou seja, a classificação de algo como doping é complexa e subjectiva.

A segunda questão também não é fácil, porque não só o doping desvirtua o mérito. Na realidade, o mérito nas competições desportivas está muito mal compreendido. Em bom rigor, o mérito só devia ser medido em função do esforço relativo que cada atleta fez (e do seu progresso), não em função de quem ganha a competição. Senão, vejamos: que mérito tem um nadador que já nasceu com mãos e pés de tamanho desproporcionado, e com todas as características aquadinâmicas, face a um outro, de um metro e sessenta, mãos e pés pequenos, mas que se dedica e esforça muito mais? Que mérito tem um competidor de um país desenvolvido que tem ao seu dispor toda uma infra-estrutura física e humana potenciadora das suas capacidades, face a um de um país miserável? Na realidade, as competições desportivas servem muito mais para assinalar dons genéticos e condições de contexto (que tornam certos seres humanos especialmente dotados para a actividade em questão) do que para destacar o mérito. Não é por acaso que, numa mesma modalidade, os campeões são, fisicamente, muito parecidos. Não foi o treino que os moldou assim, foi a genética que lhes permitiu ficarem assim e a competição que os foi seleccionando. Não haja dúvida: um campeão tem que treinar muito para o ser. Mas o que o torna campeão não é o treinar mais que os outros senão o ser mais dotado. O doping entra nesta equação como uma tentativa de tudo superar: o atleta em desvantagem, ou mais ambicioso, usa o doping para ganhar. Depois, por pressão competitiva, os outros também têm que o usar para poderem continuar a lutar…

Enfim, a grande questão é saber o que queremos do desporto profissional. Se o objectivo for apenas produzir campeões e gerar receitas televisivas, então, poderemos vir a ter competições futurísticas entre mutantes especificamente desenhados para as provas, com a nanotecnologia e engenharia genética a terem o papel principal. Se quisermos enaltecer o mérito e a natureza humana, então, teremos que redesenhar, filosoficamente, todo o desporto profissional.

Economista, doutorado em Economia da Felicidade