A Quinta do Coelho Amuado e do Cavaco Seco

Do Cavaco já não saiam farpas enquanto falava. Não saia nada de relevante, mas pelo menos ninguém se magoava com esses disparos involuntários. Como poderiam os animais respeitar aquele poleiro se o próprio que por lá vivia não o respeitava?

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Jason McKim's Old Account/Flickr

Eram tantas as calamidades a acontecer na quinta governada pelo Coelho Amuado e seu amigo Pato das Portas travessas que, por vezes, poucos se lembravam de quem estava lá no topo. Apesar de ser o Coelho a governar a Quinta, a partir da sua coelheira, acima dela estava o poleiro daquele que devia falar acima de todos os animais. Esse lugar de destaque era ocupado habitualmente por galos, que todos os dias acordavam e orientavam os restantes habitantes da Quinta. Daquele Poleiro não se governava, apesar de ser o lugar do chefe máximo. O hábito era apenas o de cantar alertas e incentivos.

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Eram tantas as calamidades a acontecer na quinta governada pelo Coelho Amuado e seu amigo Pato das Portas travessas que, por vezes, poucos se lembravam de quem estava lá no topo. Apesar de ser o Coelho a governar a Quinta, a partir da sua coelheira, acima dela estava o poleiro daquele que devia falar acima de todos os animais. Esse lugar de destaque era ocupado habitualmente por galos, que todos os dias acordavam e orientavam os restantes habitantes da Quinta. Daquele Poleiro não se governava, apesar de ser o lugar do chefe máximo. O hábito era apenas o de cantar alertas e incentivos.


Mas com o tempo, os habitantes da Quinta começaram a olhar com indiferença os galos que iam passando pelo poleiro, e considerando o seu cantar cada vez mais inútil e desnecessário. Talvez por isso, da última vez que escolheram um novo ocupante para o poleiro, tivessem elegido um Cavaco. Pensaram que seria a melhor opção, pois os cavacos que conheciam não incomodavam, não faziam barulhos de despertar logo pela manhã, e ainda menos ao longo do dia.

Chegaram mesmo a ver naquele particular pedaço de madeira, pela sua natureza, um potencial e utilidade única, pois se fosse necessário até ajudaria na economia da Quinta, nem que fosse para tapar e remendar as vedações que, já na altura, apresentavam sinais de ruína. Outros, de memória ainda fresca, lembravam a primeira aparição desse Cavaco, quando tinha sido extraído de uma laranjeira que depois começara lentamente a adoecer e murchar. Alguns apreciadores dos frutos dessa árvore, e que ainda os tentavam colher, admitem que o sabor de antigamente se perdeu definitivamente.


Para surpresa de todos, um dia o Cavaco falou! Afinal que poderia acrescentar o discurso de um cavaco já seco? Os mais críticos diziam que temia os fogos que alastravam pela quinta, uns ateados em protesto, outros criados pelo próprio Coelho e Pato na tentativa de fazerem queimadas preventivas que eram tão destrutivas como as não premeditadas. O Cavaco tinha como segura a sua reforma, envernizado junto ao aconchego de uma lareira, como peça decorativa que se aquecia enquanto outros ardiam. Agora, lá do poleiro, temia que o fogo descontrolado lhe chegasse à estrutura ressequida.


O Cavaco lembrou-se de puxar as orelhas, já bem longas, ao Coelho Amuado, mas fê-lo como cavaco-rachado, sem força e convicção, tão desarranjado que acabou no fim por mudar de opinião e apoiar o continuar das calamidades. Terá pensado que a fogueira era inevitável, mas que quanto mais tempo passasse lá em cima no poleiro mais distante estaria dos fogos terrenos.


O coelho, meio atrapalhado com a reprimenda, enfiou-se na coelheira enquanto via o Pato das Portas Travessas a voar para longe. No entanto sabia que ele voltaria assim que a coisa se acalmasse. Voltava sempre. E no fundo sabia também que do Cavaco não havia grande perigo ao seu poder, pois ele era pedaço da árvore de fruto à sobra da qual tinha crescido e saído da toca pelas primeiras vezes.


Tempos depois, parecendo que o Cavaco era abalado por bicho-carpinteiro, a voz de cavaco-rachado ia-se ouvindo cada vez mais vezes, mesmo sem que o som fizesse qualquer sentido. Apesar dos seus discursos, que vinham lá do alto, não serem ouvidos com o respeito que o prestígio do poleiro exigia, algo de positivo tinha mudado. Do Cavaco já não saiam farpas enquanto falava. Não saia nada de relevante, mas pelo menos ninguém se magoava com esses disparos involuntários. Como poderiam os animais respeitar aquele poleiro se o próprio que por lá vivia não o respeitava, muito menos quando parecia brincar com as coisas sagradas?


Mesmo aqueles que tinham visto como uma mais-valia para a Quinta ter um Cavaco no poleiro estavam agora desiludidos. Os mais optimistas, prevendo um rigor excepcionalmente duro no Inverno que se avizinhava, diziam: Um Cavaco Seco tem sempre utilidade, nem que seja como combustível.


Este texto é a continuação dos contos “A História do Coelho Amuado” e  Pato das Portas Travessas