Taxas moderadoras afastam 1800 pessoas por dia das urgências

O aumento das taxas moderadoras fez cair o número de pessoas que chegam às urgências hospitalares? Os números indicam que sim: há menos 1800 casos diários. O PÚBLICO passou um início de madrugada em dois dos maiores hospitais de Lisboa.

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Até Julho, as urgências hospitalares em todo o país receberam menos 380 mil casos Rui Gaudêncio

Têm os olhos postos num papel e abanam as cabeças. Do atendimento não têm nada a apontar. “Demorámos menos de uma hora mas sinceramente não esperava pagar mais de 20 euros... Pensava que esse era o máximo da taxa moderadora e acho excessivo”, conta enquanto olha para a factura.

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Têm os olhos postos num papel e abanam as cabeças. Do atendimento não têm nada a apontar. “Demorámos menos de uma hora mas sinceramente não esperava pagar mais de 20 euros... Pensava que esse era o máximo da taxa moderadora e acho excessivo”, conta enquanto olha para a factura.

Desta vez ainda optaram por vir, mas admitem que com a crise, todas as decisões têm de ser ponderadas, mesmo na saúde. Até Julho, as urgências hospitalares em todo o país receberam menos 380 mil casos do que em igual período de 2011 – o que representa uma queda de quase 10%. 

Os dados fazem parte da última monitorização mensal feita pela Autoridade Central do Sistema de Saúde, que integra dados até Julho. Nos primeiros sete meses do ano, os hospitais deram resposta a 3,4 milhões de episódios de urgência, o que corresponde a menos 1800 casos diários, uma evolução que se considera estar “em linha com o esperado, registando-se uma desejável moderação do acesso face a igual período de 2011”.

Uma moderação que foi pensada e introduzida em Janeiro, com o aumento das taxas moderadoras para vários serviços de saúde, nomeadamente para as urgências hospitalares, que passaram a ter um preço-base de 20 euros, quando antes custavam 9,60 euros. Os doentes comparticipam ainda o pagamento dos exames e análises até uma factura máxima de 50 euros, incorrendo em multas que vão até cinco vezes o valor em falta se não o pagarem em dez dias. Contudo, há várias isenções previstas: insuficiência económica, grávidas, crianças até aos 12 anos, algumas doenças crónicas e incapacidades acima dos 60%, entre outros motivos. Ao todo, no país 5,6 milhões de pessoas estão isentas.

Um dos objectivos das taxas é ajudar a retirar dos hospitais os casos que poderiam, por exemplo, ser resolvidos, nos centros de saúde. Isto porque nas urgências hospitalares é utilizada a chamada triagem de Manchester, um sistema que classifica a gravidade da situação de cada doente atribuindo-lhe uma pulseira de uma cor, para que seja dada prioridade a quem precisa e não a quem chega primeiro.

À pulseira vermelha correspondem as situações emergentes, à laranja as muito urgentes, à amarela as urgentes, à verde as pouco urgentes e à azul as não urgentes, considerando-se que muitos destes últimos casos não precisariam de vir a um hospital. A cada uma delas corresponde um tempo máximo recomendado para o atendimento. Hélder Paiva recebeu uma pulseira verde, mas defende que se tivesse ido a um centro de saúde talvez não pudesse ser atendido àquela hora e tivesse de faltar ao trabalho no dia seguinte.

Chegámos ao Hospital de Santa Maria pouco antes das 23h00. Nas urgências estão sobretudo pessoas na rua a olhar para os familiares e amigos que já passaram pela triagem e que aguardam numa sala de espera envidraçada com vista para o exterior e onde só pode permanecer um acompanhante. Entretêm-se com cafés e cigarros. Olham para o chão, para o céu, para sítio nenhum. Dão novidades à família por telefone, suspiram. Os pensamentos são interrompidos por ambulâncias de bombeiros e do INEM que chegam com os casos mais graves. São sobretudo idosos. Alguns estão sozinhos. Vêm também carros particulares e táxis apressados com doentes em bancos recostados.

Às 23h54 chega um carro cheio com um doente a gemer de dores com uma cólica renal e a morder uma toalha. A família atabalhoa-se para o conseguir tirar do veículo, o segurança rapidamente disponibiliza uma cadeira de rodas. Em dois minutos é chamado para a triagem e passa para a sala de espera já com soro.

"Cuidado com a perna do senhor"

O segurança Alexandre Pereira, de 53 anos, vai recebendo quem chega com um sorriso e vai tentando responder às perguntas nervosas de familiares ansiosos. “Cuidado com a perna do senhor, veja lá não bata na porta”, diz a quem empurra a cadeira de rodas de um idoso. “É uma questão de humanismo. Se todos fizermos tudo um bocadinho melhor, isto corre bem para todos. Há muita gente que vem cá sem precisar, mas para outros somos a cara que vêem em dias difíceis”, justifica, confirmando que as taxas moderadoras têm provocado alguns dissabores e discussões. São 00h45 quando chega outro idoso numa ambulância, empurrado por um maqueiro bem-humorado que brinca com a velocidade a que a maca segue: “Olhe o excesso de velocidade, é que está aqui a polícia.” Uma frase que arranca alguns sorrisos a quem está na sala de espera.

São 00h48 e Isabel Melo, 73 anos, ainda espera de mala ao colo novidades do marido, que está acompanhado pelo filho. Veio às 19h00 e está na sala de observações. Isabel não tem a certeza se o marido recebeu uma pulseira laranja ou amarela, mas explica que tem Alzheimer e que terá tido um AVC. Deverá precisar de internamento. Isabel está a par das taxas moderadoras e encolhe os ombros: “Felizmente nós podemos e com o que nos dão aqui compreendo que se tenha de pagar. Sempre houve abusos e agora pagam uns pelos outros. Preocupa-me sobretudo quem está a passar dificuldades e que tem pouca saúde.”

Uma preocupação partilhada pelo provedor de Justiça. Alfredo José de Sousa, que já fez algumas recomendações ao Governo, nomeadamente a criação de isenções parciais. O provedor mostra-se particularmente preocupado com as pessoas com rendimentos pouco acima dos 628 euros (limite máximo para alegar insuficiência económica), propondo que os filhos também contem para a isenção nas taxas.

Já o presidente da Comissão de Reavaliação da Rede Nacional de Emergência e Urgência, José Artur Paiva, que recentemente propôs que o país passasse de 89 para 73 serviços de urgência, considera que a redução do número de episódios de urgência a nível nacional é “um bom indicador e positivo”. Significa que “as taxas moderadoras estão a conseguir regular a procura”. Porém, alerta que este sistema por si só não garante que os cidadãos que não precisavam deixaram de ir às urgências. “A redução é significativa nos verdes e nos azuis, mas não é aquela que seria expectável, e reduzir nem sempre é melhorar”, sublinha o também director do serviço de urgência do Hospital de São João, no Porto.

Para José Artur Paiva, os casos azuis e verdes a nível nacional ainda têm um peso muito grande. Em 2011 representavam cerca de 40% e não terão baixado para menos de 30% a 35%, diz. O PÚBLICO pediu dados ao Hospital de Santa Maria sem sucesso. “Com um sistema a funcionar harmoniosamente são casos que poderiam ter sido seguidos nos cuidados de saúde primários”, reforça, dando as unidades locais de saúde como "bom exemplo" de articulação entre hospitais e centros de saúde. Por isso, entende que a reforma deverá passar por criar condições nos centros de saúde para que existam mais consultas não programadas. E que se aposte também em soluções como a Linha Saúde 24, “que ainda tem uma subutilização”. De recordar que a procura da Linha Saúde 24 (808 24 24 24) cresceu cerca de 15% no primeiro semestre do ano, com um total de 450 mil chamadas.

Contas com a troika

A questão é que o aumento das taxas moderadoras para valores que representassem cerca de 2% do total do orçamento do sector fazia parte do acordo com a troika (Fundo Monetário Internacional, Comissão Europeia e Banco Central Europeu). Curiosamente, a receita a arrecadar com as taxas foi a primeira falha que o Ministério da Saúde teve de assumir com a troika, já que o valor previsto vai derrapar em 176 milhões de euros por a utilização dos serviços estar a ser inferior ao previsto, mesmo nos centros de saúde.

O sector vai conseguir apenas 164 milhões de euros com as taxas moderadoras, quando previa 240. Também para o ano a receita deverá ficar nos 190 milhões, em vez dos 290 que chegaram a ser avançados. Mesmo assim, o valor das taxas pagas pelos utentes até Julho ascendeu aos 93,6 milhões de euros e ultrapassou a totalidade do valor conseguido em 2011, que não foi além dos 90 milhões.

Mas um estudo realizado por Miguel Gouveia, da Universidade Católica, e por Margarida Borges, do Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência da Faculdade de Medicina de Lisboa, apresentado na quarta-feira, também indica que é possível transferir 45% das urgências hospitalares para os centros de saúde, bem como um terço das consultas, o que permitiria uma poupança de 356 milhões de euros, mas apenas a longo prazo.

Não há dinheiro para táxis

São 01h20 quando deixamos as urgências de Santa Maria para nos encaminharmos de táxi para o Hospital de São José. Costuma transportar muita gente aqui do hospital?, perguntamos pelo caminho ao motorista António Costa, de 60 anos. “Acha que com a crise as pessoas têm dinheiro para andar de táxi? São cada vez menos as que apanhamos aqui. E olhe que são cada vez mais as que esperam pelas cinco e tal da manhã para voltarem a ter transportes públicos e irem para casa. É um roubo autorizado aquilo que nos estão a fazer”, responde indignado.

Depois de percorrer as sinuosas ruas no interior de São José, o táxi deixa-nos à porta. São 1h47 quando chega mais uma ambulância com uma pessoa ainda de pijama que entra directamente para a zona dos doentes urgentes. Pouco depois das 2h00 chega Sueli Lima, 30 anos, com um grupo de amigos aperaltados. Estavam no cinema quando ficou “indisposta e com dores abdominais”. Achou melhor vir ao mesmo hospital onde já tinha estado em Julho por alergias na pele depois de uma exposição ao sol. Em ambos os casos, pulseira verde. Agora foi surpreendida com o pagamento de 40 euros – 20 por esta vez e 20 que ainda não tinha regularizado do Verão. “Já viu o que é uma pessoa chegar aqui e largar assim 40 euros? Às vezes já compensa ir ao médico privado, mas como é de noite é mais prático. Ao centro de saúde não vou porque sou estrangeira e lá pedem-me uns 30 euros”, diz.

Segundo dados enviados ao PÚBLICO pelo Hospital de São José, esta unidade segue uma tendência contrária à do país. Na urgência polivalente foram atendidos 120.339 doentes entre Janeiro e Setembro, o que representa um crescimento de 0,8% face ao mesmo período de 2011, em que tinham sido atendidas 119.352 pessoas. Já em 2010, o hospital recebeu, nos primeiros nove meses, 114.524 casos. A administração não quis comentar os dados, mas desde Janeiro que o São José passou a acolher os casos que eram recebidos pelo Hospital Curry Cabral, que fechou as urgências no final de 2011.

Um dado mais importante diz respeito ao tipo de doentes que acorreram às urgências quanto ao “grau de prioridade”. Os doentes a quem foi dada uma pulseira laranja (muito urgentes) representaram 6,4% do total, o que significa que subiram 1,3% face a 2011. Já os com pulseira amarela (urgentes) subiram 14%, tendo um peso relativo de 38%. Por outro lado, os doentes com pulseira verde (pouco urgentes) ainda representam 51%, mas caíram 5%, e os doentes com pulseira azul (não urgentes) tiveram um peso de apenas 1% após uma queda de 18%.

O presidente da Comissão de Reavaliação da Rede Nacional de Emergência e Urgência reforça que esta é a tendência nacional, mas que importa adoptar mais estratégias e olhar para outros dados. No caso do seu hospital, o São João, o médico diz que o número de episódios de urgência também caiu, “mas mais importante é que temos vindo a conseguir reduzir o tempo de permanência de um doente no serviço de urgência e a reduzir as taxas de abandono, o que é possível porque temos um modelo com profissionais fixos”. Em média, os doentes estão três horas e meia nas urgências deste hospital, e o indicador europeu recomenda que o tempo esteja abaixo das seis horas.

Taxas são sobrecarga

Do lado do Movimento de Utentes dos Serviços de Saúde (MUSS), Carlos Braga diz que têm “recebido contactos de algumas pessoas que mostram o seu desagrado e preocupação” em relação aos novos valores das taxas moderadoras. O representante do movimento garante que a subida do valor está a levar a que cada vez menos pessoas recorram aos serviços de saúde, “adiando muitas vezes a decisão e agravando o estado de saúde com que acabam por chegar ao hospital”. “As taxas moderadoras, num momento como o país está, são uma sobrecarga e as pessoas têm medo do que vão pagar. Se de certa forma havia alguns abusos, a verdade é que agora são as pessoas com limitações económicas que ficam de fora e acredito que em 2013 a situação ainda vá piorar”, acrescenta.

São 2h37 quando mais alguns sacos de lixo saem das urgência e Elsa, de 74 anos, se debate com a cadeira de rodas do marido que traz na cabeça uma dezenas de pontos a remendar a queda caseira. O segurança e a assistente operacional comentam que trabalhar num hospital é “ver a realidade do país em que vivemos, lidar com as dificuldades das pessoas e ver que quem mais precisa nem é quem pede ajuda”. Elsa pagou 20 euros da vinda à urgência mais 14 de uma TAC. “Sinceramente, acho que não se justifica. Ainda vai ser mais difícil convencer o meu marido a vir quando é preciso. Sabe como são os homens, não sabe?” São quase 3h00 quando chega o anúncio de que o hospital se deve preparar para receber uma situação de trauma. Às 4h00 ainda não tinha chegado. Na saída cruzamo-nos com as luzes azuis do INEM e com um carro. Será a família ou mais uma pulseira verde?