Free jazz: 10 discos (parte 5)

O Bodyspace seleccionou uma dezena de obras do "free jazz", estilo surgido em meados da década de 60

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Angela Costa

Sun Ra - "Space is the Place" (1972)

A verdade faz-nos mais fortes

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Sun Ra - "Space is the Place" (1972)

Impulse

Um disco que é literalmente um filme. Sim, porque este disco dá nome a um filme que sai anos mais tarde, e porque ouvi-lo, seja onde for, esteja onde estiver, também é um filme, a vida nunca mais será a mesma. No meu caso foi há mais de 15 anos e lembro-me de pôr o CD novinho em folha na sala multiusos da faculdade e "kaboom", toda a gente começa a sair aos poucos, uns refilando, outros fugindo de fininho com uma bela cara feia. E eu feliz. A aparelhagem comum tornou-se minha e do mantra "Space is the place" repetido "n" vezes até ao infinito nunca exausto. Enquanto muitos diziam horrível, eu, por outras palavras, pensava vanguardista, cósmico, psicadélico, "jam" espacial, free jazz com a pimenta interplanetária dos "moogs", caldeirão caleidoscópico da Arkestra e a bordo o primeiro coro de gospel do mundo que foi a Saturno. Se não foram, pelo menos Herman Blount, mais conhecido por Sun Ra, jurou que isso lhe aconteceu ainda na década de 30 do século XX. Raptado e levado até Saturno quando ainda nem se falava de OVNI's ou de raptos. Isso é obra, tanto como este disco é uma obra-prima.

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Sun Ra é o alucinado maestro-piloto que dá o mote-com-dedadas-cirúrgicas no teclado do "moog", qual "cockpit" da nave espacial que aos poucos, assente na "groove" atonal e eterna do mantra, vai explodindo em instrumentos de sopro alienígenas – “só podem ser alienígenas”, pensa quem ouve à primeira, eu pensei – tal é a intensidade sobre-humana desta faixa. Vinte minutos que parecem a melhor hora de jazz de sempre. E depois há mais e não do mesmo. E para uma mão-cheia do melhor jazz restam quatro faixas: "Images", "Discipline", "Sea of Sounds" and "Rocket Number Nine". As duas primeiras, mais clássicas e igualmente deliciosas na abordagem, servem para respirar fundo o ar extraterrestre parco em oxigénio pós-faixa 1. As duas últimas, umas nervosas incendiárias, são "space-jazz" do mais fino calibre. Faixas mais curtas e todas elas com aquela sensação de que já lá estamos, que chegámos ao nosso destino: Saturno. E não é uma viagem de ida e volta. A não ser que não se carregue no "repeat" ou no "play" outra vez e se desligue a aparelhagem. Aí talvez. Mas cuidado ao voltar à realidade, olhem que a lei da gravidade na Terra não é a mesma. 

Albert Ayler - "Spiritual Unity" (1964)

ESP-Disk

Aos primeiros acordes, "Spiritual Unity" retrata-se imediatamente como disco essencial para perceber, usufruir, explicar e dignificar o "free" jazz, esse imenso bicho de sete cabeças para uns e uma religião para outros. Em quatro momentos igualmente importantes, o controverso Albert Ayler, em preciosa comunhão com Gary Peacock no contrabaixo e Sunny Murry na bateria, assinou um disco descrito na altura como “chocantemente diferente”, uma autêntica “agressão ao jazz” (elogio). "Spiritual Unity" é realmente um disco quase violento, saído directamente das entranhas mais congestionadas, cruíssimo na sua essência e altamente recompensador nas opções que deu ao jazz por volta de 1964. "The Wizard" é uma explosão de criatividade imensa, um momento irrepetível de liberdade e combustão. "Spiritual Unity" não é apenas o disco essencial da discografia de Albert Ayler; na riqueza da sua exploração, é também um dos documentos mais importantes do "free" jazz e um capítulo essencial da música improvisada, independentemente das suas cores ou tons. Um soco no estômago não é, regra geral, mais coisa menos coisa, algo de bom: mas neste caso é uma bênção.