Primo bom e primo mau?

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Sempre quis ser banqueiro, mas há outros que querem ser astronautas e, em vez da academia da NASA, só conseguem entrar na JSD ou na JS. E lá ficam à espera de um bom Espaço na aventura da vida. José Maria Espírito Santo Silva Ricciardi, Zé Maria para os criados, funcionários e amigos (pelo menos os que sobram desde a bronca do BES), quis ser e foi banqueiro. Só que o primo Ricardo Salgado também queria. E, se bem o disse, pior o fez.

Numa biografia que encontra paralelos com outros primos importantes da História Universal (apresentamos indícios úteis à CMVM e PJ), Zé Maria encontrou a sua vocação muito cedo: “O fascínio das crianças é a caixa-forte. As portas grossíssimas, de aço, com imensas fechaduras, imensos guardas... Havia muito mais notas do que há hoje, porque os outros meios de pagamento (os cartões, os cheques) ainda não se tinham desenvolvido. Não havia os dispensadores, as máquinas que contam as notas; contavam-se à mão. Os tipos contavam a uma velocidade que as notas nem se viam! Fiquei fascinado! Foi a primeira vez que disse: ‘Quero trabalhar num banco.’”*

A isto chama-se psiquiatricamente “complexo do Tio Patinhas”. Só que o Tio Patinhas da família já tem nome, é o Ricardo Salgado! Tu vais ser o Patacôncio e é se quiseres, primo Zé Maria, vais comer muitas vezes o próprio chapéu, rapaz. Zé Maria, hoje, ainda quer ser banqueiro, mas não sabe se o deixam continuar. O BES já se foi, o BESI (banca de investimentos, onde é presidente) está a marinar em molho de Monte Branco, batido com claras Furacão, com um cheirinho decadente a tráfico de influências.  Mas o primo Ricardo é que é o culpado, bolas, lá vem ele outra vez. Há vários anos que Zé Maria anda a dizer que, ao contrário de “outros” membros da família, não se deixou deslumbrar. Teria mesmo percebido na escola da vida, para seu espanto, que o dinheiro dos banqueiros, apesar de às vezes não conseguirem contar as notas que entram no cofre-forte, tantas são, e tal a velocidade a que correm nos dedos, afinal não é dinheiro deles, mas de quem lhes confia rendimentos. Tipo — como dizem as pessoas normais —, tipo as pessoas normais que não são Espírito Santo. E também percebeu, na nacionalização do banco, congelamento das contas, prisão de membros da família, em 1975, que o poder é “transitório e fugaz”. Mais: na posição em que ele e outros se encontram, “muita da relação que se cria não é genuína”. A isto, ou se chama presciência, ou honestidade “à moda da banca”. Acabam sempre por sugerir o que são quando dizem que não são, já repararam? Melhor ainda, quando dizem que são o que realmente são, mas, como diz o povo, com a verdade me enganas. 

Hoje o primo Ricardo dá entrevistas a jornais do Brasil e recusa-se a ser “pivô”  da crise no banco. Ele só está “no olho do furacão” por estar à frente de um grupo financeiro com quase 150 anos. Mas os últimos negócios — leia-se ruínas, escândalos e fraudes — do grupo GES estavam distribuídos. Manuel Fernando, na Rioforte, Zé Maria no BESI. Isto é, ninguém deve esquecer que Ricardo, o primo mau do banco mau, surge como vilão, mas o alegado primo bom do banco bom, o Zé Maria, que aliás tentou derrubá-lo há meses, não é melhor. Basta lembrar que Zé Maria está a ser investigado por tráfico de influências e é arguido por crimes de abuso de informação privilegiada e manipulação de preços de mercado, em transacções de acções da EDP e EDP Renováveis, em 2008. Um ano depois, ainda sem saber que tinha sido alvo de escutas telefónicas, este licenciado em Ciências Económicas pela Universidade de Lovaina, assegurava: “A família Ricciardi foi sempre uma família de trabalho. Os valores com que me identifico — honestidade, seriedade, uma certa discrição na vida — vinham desse lado.”* 

Alô?, o primo Zé Maria até parece o primo Ricardo a falar, fora o pormenor Ricciardi. Na verdade, é natural, está no sangue. Zé Maria, nascido a 27 de Outubro de 1954, foi, durante vários anos, criado em casa do primo e pela mãe de Ricardo, um pouco mais velho. Eram, aliás, como irmãos.

Isto dos primos tem muito que se diga, e, se quiserem pensar no assunto, há casos interessantes de relações familiares que acabaram tortas. Passemos por cima de Afonso Henriques, que quase matou a mãe, ou de Júlio César, que mesmo depois de apunhalado ainda chamou “filho” a Brutus: “Tu quoque fili mi, Brute?

O nosso D. João II, Príncipe Perfeito, matou a punhal, com a própria mão, o primo direito e cunhado (irmão da rainha). Não tinha nada contra primos. Aliás, mais tarde nomeou o seu outro primo mais novo, Manuel, irmão daquele que matara, como herdeiro no trono de Portugal. João descobriu que Diogo, o duque de Viseu, estava numa conspiração para matar o rei, de feitio centralista. O cronista Rui de Pina descreveu-o: “Sendo senhor dos senhores, nunca quis ser nem parecer servo dos servidores.” Aliás, numa antevisão dos actuais poderes do Banco de Portugal, decretou que, “caso se confirmem abusos dos fidalgos contra o povo, o rei pode confiscar os bens que ache legítimos”. Parece o Banco de Portugal no caso BES, não é, primos Espírito Santo?
Ricardo & Ricciardi, bela companhia.

* Entrevista a Anabela Mota Ribeiro, Jornal de Negócios, 2009

A crónica Personagens de Ficção será interrompida por motivo de férias do seu autor. Estará de regresso a 14 de Setembro

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