Quando a Ucrânia desperta a Europa

1. Ontem, por volta das quatro e meia da tarde, em plena reunião do grupo parlamentar do Partido Popular Europeu, um deputado italiano do externava a sua perplexidade. “Neste momento, por toda a Itália, há manifestações, bloqueios e protestos violentos em que são postas em causa a União Europeia e a moeda única. E, ao mesmo tempo, à mesmíssima hora, em Kiev, na longínqua Ucrânia, centenas de milhar de pessoas arriscam a vida, a integridade física e a liberdade para se juntarem à Europa – à União Europeia – e aos valores que ela representa. Que fizemos nós para que os cidadãos dos Estados-membros não vislumbrem esses valores e os cidadãos de outros Estados aspirem ardentemente por eles?”.

2. A hesitação da Ucrânia em associar-se à chamada Parceria Oriental com a União Europeia – que envolve as antigas repúblicas soviéticas “pertencentes” ao continente europeu (Ucrânia, Bielorrússia, Moldávia, Geórgia, Arménia e Azerbeijão) – nada tem de artificial ou surpreendente. A Ucrânia – cujo território, mais recentemente, oscilou ao sabor das “mexidas” geopolíticas da Alemanha e da Polónia – é justamente o campus de encontro e de recontro entre a “civilização ocidental” e a “civilização russa”. Por um lado, ela simboliza o berço da civilização russa, com a primeira vaga de cristianização dos povos eslavos (Grande Morávia), onde pontificam figuras míticas e fundacionais como S. Cirilo (“autor” do alfabeto cirílico). E decerto mais importante para a Ucrânia e a Rússia, S. Vladimiro, que terá promovido o conhecido e massivo baptismo de Kiev. Por outro lado, a influência de vários séculos de domínio polaco e lituano, com o seu consabido catolicismo e ligação a Roma – a ponto de se fundarem as igrejas uniatas, católicas, mas de rito oriental –, que moldaram fortemente aquela que é agora a parte ocidental do território ucraniano.  

Não se trata, obviamente, apenas e só de questões civilizacionais, culturais, históricas e espirituais. Cura-se outrossim de questões geoestratégicas fundamentais, de natureza económica, logística e militar. Basta pensar na necessidade de uma zona tampão de protecção da Rússia, no acesso ao Mar Negro e ao Mediterrâneo, na circulação do gás rumo aos destinos europeus de exportação. Na versão moscovita, russa ou soviética, a mãe Rússia não prescinde nunca da sua zona “natural” ou “vital” de influência.

A tudo isto acresce o factor especificamente político: uma “europeização” da Ucrânia implicaria a adopção de um modelo de liberdades e garantias – designadamente, em sede de possibilidade de contestação e de oposição --que, apenas por existir, pode pôr em perigo a ordem “pacata e tranquilamente” estabelecida na Rússia. O receio fundado de uma contaminação do espírito e do ânimo do exercício das liberdades cívicas aos cidadãos russos também motiva o poder russo a cercear e refrear a aproximação europeia da Ucrânia.

3. Não deixa realmente de ser paradoxal que, quando tantos duvidam e atacam o projecto europeu e parecem ter vergonha de hastear a bandeira europeia, esta tome o lugar da estátua de Lenine numa praça de Kiev. E não deixa verdadeiramente de ser encorajador que, por uma vez, os líderes europeus, reunidos em Vilnius para dar corpo à Parceria Oriental, tenham falado firmemente e a uma só voz em defesa da prevalência dos valores da Europa na Ucrânia. E que o tenham feito sem medo das represálias e intimidações advindas da Praça Vermelha, apesar das ameaças de cortes de fornecimento de gás ou da subida arbitrária e unilateral dos respectivos preços (por exemplo, à Hungria). E ainda e até que um político eurocéptico da cepa de Jaroslaw Kaczynski tenha ido a Kiev apoiar as manifestações pró-europeias da Praça da Independência.

4. Há um ponto que tem de ficar claro, mesmo para a multidão de renitentes: não há Europa sem Rússia. Foi isto que proclamou o Papa João Paulo II, quando rasgou horizontes em defesa de uma Europa que fosse do Atlântico aos Urais. Não por acaso, João Paulo II era polaco, sofreu o pesadelo alemão da II Guerra Mundial e viveu sob o jugo do comunismo e da dominação soviética. Para ele, que, sem sucesso, tentou insistentemente visitar a pátria dos czares, afigurava-se evidente que não havia Europa sem Rússia.

E não se trata aqui apenas de aceitar uma evidência política, militar e geoestratégica. Trata-se, antes e sem nenhuma reticência, de reconhecer a, chamemos-lhe assim, identidade cultural russa como uma cultura genuína e nuclearmente europeia. Poderá, com sérias razões e bons argumentos, contrapor-se a “civilização ortodoxa” – para usar a categoria não propriamente rigorosa de Samuel Huntington – à “civilização ocidental”. Mas não poderá, em caso algum, excluir-se essa civilização ou cultura russa da grande casa da cultura europeia. Alguém ousará falar na alta cultura europeia sem mencionar Tolstoi ou Dostoievski? Alguém arriscará uma história da grande música europeia – e, em especial, da sua “modernização” – sem Tchaikovsky ou sem Stravinsky? Alguém se atreverá a pensar as artes performativas europeias sem o contributo da inalcançável escola de dança e de bailado da Rússia?

5. As soluções – que podem passar, no futuro distante, por uma Ucrânia na União Europeia – não passam, com toda a certeza, por uma futura integração da Rússia na União. Mas os cidadãos e os Estados europeus não podem abandonar, ostracizar ou isolar os cidadãos russos que, por direito e por mérito, partilham com eles uma comunidade de origem e de destino. Não é por acaso que a influência russa voltou a crescer enormemente na Bulgária e na Sérvia, espreita na Roménia ávida da Moldávia e se espalha dissimuladamente a Chipre e à Grécia. Por ora, temos de ser firmes e fortes com a Rússia. Mas a prazo, não poderemos esquecer que eles fazem parte de nós. 
 

 
 

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