Educação e ideologia

O debate ideológico na educação voltou a dominar a agenda política. A intenção de refundar as funções do Estado, associada à indisfarçável necessidade de reduzir a despesa pública, recolocou a educação no domínio da polémica pública.

 

Não deixa de ser curioso o facto de as reações à entrevista do Primeiro Ministro se terem centrado sobre a privatização do serviço público de educação, na alternativa do “co-pagamento” da escolaridade obrigatória, ou, no polo oposto, na defesa acérrima da escola pública, “custe o que custar!”.
 
Felizmente, o Ministro da Educação e Ciência e, mais tarde, o Primeiro Ministro vieram esclarecer não existir intenção por parte do Governo de sacrificar a escolaridade obrigatória e a sua gratuitidade às exigências da austeridade. Entretanto, as declarações de diversas figuras públicas e comentadores de ocasião, já tinham delimitado a natureza desse debate ideológico.
 
Utilizo o termo “ideológico” na perspectiva da simplificação dicotómica e geralmente redutora do confronto entre as posições mais “públicas” ou mais “privadas”. Mas também o utilizo na perspectiva mais corrente de mistificação dos problemas mais importantes. Na minha opinião, centrar o debate entre público e privado, ou seja na natureza jurídica do estabelecimento de ensino, é desviar a atenção do que é fundamental: qualificar as aprendizagens e melhorar o desempenho dos alunos e das escolas.
 
Mas vamos ao debate. A ideia da privatização das escolas públicas muito poucos a perfilham. Basta fazer as contas para se perceber que uma parte significativa dessas escolas nem representariam um alívio da despesa pública nem uma remuneração compensadora para quem, entre os empresários da educação, se disponha a investir seriamente nessa atividade. Admito que algumas escolas públicas localizadas em meios urbanos e com uma razoável escala de procura podem constituir um atrativo, mas restam as muitas outras que não preenchem esse requisito e que dificilmente poderão tornar-se rentáveis. Será que os empresários da educação estão interessados nas escolas TEIP, ou nas que no interior do país se debatem com a quebra demográfica e as salas quase vazias?
 
É evidente que a ideia que tem maior aceitação e que já está parcialmente concretizada é a do financiamento estatal do serviço público de educação, relançando a experiência dos contratos de associação. Há que reconhecer que uma parte significativa dessa experiência se tem saldado por um inestimável serviço prestado às famílias, ao serviço público de educação e ao próprio Estado. Por isso entendo que se trata de uma solução que não deve ser menosprezada. Porém, existem quatro requisitos que nem sempre têm sido preenchidos: rigor contratual, defesa do interesse público, transparência de processos e avaliação objectiva e regular do serviço prestado. Respeitados estes quatro requisitos, não vejo razão objectiva e despejada de preconceitos ideológicos que, em casos justificados, se possam celebrar novos contratos de associação.
 
Os sucessivos estudos sobre os custos comparados da gestão privada e pública das escolas nem sempre são esclarecedores das condições do seu funcionamento. Sem esse esclarecimento apenas se acentua o combate ideológico. Da experiência que tenho concluo que a comparação de custos médios é ilusória, dada a dispersão de valores, especialmente entre as escolas públicas. Recordo-me de um estudo feito em 2003 pelos serviços do Ministério da Educação em que o custo médio por aluno nas escolas públicas variava na proporção de 1 para 4. Muitas dessas escolas conseguiam custos inferiores ao que se pagava às escolas privadas, outras, por diversas razões, incluindo a má gestão dos recursos humanos, apresentam custos muito superiores. Sem se perceber com rigor qual a estrutura desses custos, não vale a pena entrar no debate. Dos estudos realizados nenhum deles me dá essa informação.
 
Nesta perspectiva, querer nivelar o pagamento a entidades privadas pelo custo médio das escolas públicas é querer distribuir um ganho marginal decorrente da má gestão pública. O Estado tem como alternativa uma solução bem mais acessível e mais justa: melhorar a gestão das escolas públicas, fazendo diminuir a elevada componente dos custos de ineficiência.
 
Mas se, mesmo assim, o Estado precisa de fazer novos contratos de associação com entidades privadas, de forma a assegurar o serviço público de educação, então tem uma maneira expedita e transparente de concretizar os requisitos atrás enunciados: lançamento de concurso público para contratualização desse serviço em que o número de alunos beneficiados, o número de turmas e o respectivo custo sejam sujeitos à melhor oferta. Quantos dos atuais contratos foram sujeitos à regra do concurso público? O princípio da concorrência deve sobrepor-se à escolha discricionária da entidade prestadora do serviço.
 
Vamos à solução do “co-pagamento”. O Estado assumiu com a sociedade um compromisso relativamente ao cumprimento de um dever e à satisfação de um direito: “assegurar o ensino básico universal, obrigatório e gratuito”, conforme determina a Constituição da República. A gratuitidade decorre, antes de mais, do carácter obrigatório. Não tem sentido o Estado determinar que um determinado nível de ensino se torne obrigatório, sem, em contrapartida, garantir o acesso universal através da sua gratuitidade. Esta associação entre os dois conceitos aplica-se não só ao “ensino básico”, mas também a todos os níveis de ensino que de forma compulsória o Estado tenha tornado obrigatório, como é o caso do ensino secundário e de nível secundário.
 
Daqui se retira que a solução do co-pagamento só é susceptível de aplicação em níveis e outras modalidades de ensino não obrigatórias. Caso contrário, comece-se por alterar a Constituição.
 
Se o problema não se coloca no domínio dos princípios, mas antes no do quadro da austeridade e da redução da despesa pública, então qualquer contributo do Ministério da Educação terá de passar pela combinação entre aumento de receita nos níveis e modalidades de ensino não obrigatórios e diminuição da despesa pela melhoria da gestão dos recursos humanos e materiais. Há que reconhecer que neste último domínio a margem de redução ainda é considerável, mas inversamente proporcional ao custo político que representa.
 
Este é um dos casos em que a ideologia não ajuda a resolver os problemas. Estes são simples na sua formulação, ainda que complexos na sua resolução. Por favor, não os tornem nem mais complicados, nem mais difíceis de resolver.
 
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico
Sugerir correcção
Comentar