Querida, mudei a casa!
É simples impor aos outros arrendamentos coercivos, mas é inadmissível não estabelecer o mesmo critério para o parque imobiliário do Estado.
Foi recentemente anunciado o pacote de medidas fiscais, e outros de natureza distinta, que tem por objetivo resolver a curto prazo o problema habitacional dos Portugueses. Uma espécie de choque fiscal, estritamente dirigido ao setor da habitação, associado a outras medidas legislativas que têm por finalidade forçar o mercado de arrendamento a disponibilizar unidades imobiliárias, teoricamente dirigidas aos mais desfavorecidos, por ser intenção do Governo praticar o regime de rendas acessíveis.
No momento em que decidimos discorrer sobre este assunto, temos – exclusivamente – como elemento de trabalho um documento apresentado pelo Governo numa cerimónia mediática através de simples quadros, que mais não são do que “PowerPoints” sobre medidas que irão entrar em discussão pública.
Neste contexto – e porque tecnicamente não nos parecia legítimo –, não iremos avaliar as propostas na sua vertente jurídica e, muito menos, perorar sobre matérias sensíveis que podem afrontar princípios de natureza constitucional. Deixaremos esta matéria para o momento em que o detalhe das medidas conheça a luz do dia (se é que algum dia as medidas sairão desta barriga de aluguer que o Governo tomou de empréstimo ao Bloco de Esquerda).
Há, contudo, uma proposta que, mesmo antes de ser conhecida na sua arquitetura jurídica, merece ser avaliada na sua dimensão ética. Reportamo-nos ao “arrendamento coercivo”. Basicamente, o que está previsto [ou pensado] radica na possibilidade de o Governo impor aos proprietários a obrigação de celebrar contratos de arrendamento com o Estado português que serão depois objeto de subarrendamento a famílias [pensamos, de menores recursos] com rendas acessíveis. Ou seja, com esta solução, o Governo, autoritariamente, vai impor aos proprietários a celebração de contratos de arrendamento com o Estado mesmo contra a sua vontade. Admitimos que – por razões de razoabilidade e lógica – fiquem de fora desta medida as habitações de férias, dos emigrantes e daqueles que, possuindo uma habitação em Portugal, estejam temporariamente a trabalhar em território estrangeiro.
De todo o modo, integram o universo do arrendamento compulsivo os proprietários que, tendo adquirido imóveis com diversas finalidades, os mantêm devolutos por razões que lhes dizem direta e exclusivamente respeito.
É o direito básico da livre gestão da propriedade privada, que o Estado não pode condicionar ou comprimir, impondo a celebração de contratos de arrendamento obrigatórios.
A medida em apreço, no plano ético, contamina a relação de confiança entre o Estado e os proprietários e – independentemente da sua conformidade constitucional – põe em causa a proteção da propriedade privada, elemento fundamental para o desenvolvimento da economia de qualquer país e para a manutenção da confiança de agentes económicos investidores.
Militam, ainda, a favor desta conclusão dois fatores que qualquer visão fundamentalista do assunto não pode ignorar.
Desde logo, a circunstância de os proprietários pagarem impostos no momento da aquisição, suportando também todos os anos impostos pela simples detenção da propriedade. Contribuem, assim, para a receita tributária com o seu esforço, sendo absolutamente desproporcional impor-lhes um destino do imóvel diferente daquele que é a sua pretensão.
Por outro lado, o Estado português ignora o destino que vem dando ao seu património imobiliário: dezenas de unidades imobiliárias estão abandonadas e desprovidas de qualquer utilização, muitas delas em estado de degradação avançado e, quanto a elas, assiste-se a um silêncio do Governo ensurdecedor.
Faria sentido, para que a medida do arrendamento coercivo tivesse o mínimo de credibilidade, que o Governo anunciasse o que pretende fazer aos seus imóveis devolutos e degradados e de que modo os pretende pôr ao serviço da população com rendas acessíveis.
É simples impor aos outros arrendamentos coercivos, mas é inadmissível não estabelecer o mesmo critério para o parque imobiliário do Estado.
Com estas medidas arriscamo-nos a destruir a confiança que é devida aos proprietários e a definhar a médio prazo o mercado de arrendamento habitacional.
A visão imperialista que resulta desta solução, com claro pendor de um autoritarismo que pensávamos ter sido esbatido pela consolidação da democracia, seguramente que não resolve, mesmo a curto prazo, o problema habitacional e irá potenciar a litigiosidade na relação com o Estado, cuja interferência na esfera privada é absolutamente intolerável.
E os proprietários, que têm – legitimamente – casas devolutas, arriscam-se a ter que dizer com surpresa: “Querida, perdemos a casa!”