Tentei perceber a razão pela qual o parlamento rejeitou condenar o regime angolano no processo de Luaty Beirão e restantes activistas, agora condenados a penas efectivas de prisão, depois de se terem posto, todos e ao mesmo tempo, a ler um livro. E, confesso, ainda estou na mesma, sem perceber porquê.
Miguel Torga, na sua biografia, contava a páginas tantas como um dia, durante o regime ditatorial, tinha ido parar à prisão. Questionado por um prisioneiro sobre a razão da sua detenção, Miguel Torga respondeu: “Escrevi um livro“, ao que o prisioneiro retorquiu assobiando: “Um livro? Olá, temos sarilho!“. Porquê? Por não haver nada pior, para além de um livro, cheio de ideias que se metem nas cabeças das pessoas, as quais dão sempre uma carga de trabalhos aos dirigentes dos países que, inevitavelmente, pensam sempre de maneira diferente.
O livro em questão responsável pela condenação de Luaty e seus companheiros intitula-se “From Dictatorship to Democracy, A Conceptual Framework for Liberation“, de Gene Sharp, o qual propõe uma série de estratégias de combate contra regimes autoritários por meios pacíficos. E por aqui se percebe a importância de ter um povo iletrado e analfabeto, incapaz de ler, feito, nascido e criado para obedecer sem questionar ou indagar, e sempre a assinar de cruz. Em Portugal tivemos o mesmo, e se, nem por isso estamos melhor, pelo menos, a “outra senhora“ já lá vai (paz à sua alma, ou talvez não).
Se à leitura deste livro juntarmos o facto de os jovens detidos terem na sua posse um suposto documento com os nomes de futuros dirigentes de um Governo de unidade nacional, então percebe-se a acusação de golpe de estado por parte do regime.
Agora, vamos aos factos: este regime dura há 36 anos, privilegiando uma classe social e política responsável pela miséria de um povo inteiro. O regime é uma ditadura, a qual, como todas as boas ditaduras, procura controlar as polícias, os tribunais e os meios de informação em favor próprio, ao mesmo tempo que reprime violentamente as poucas tentativas de protesto que até hoje saíram à rua, culminando na recente condenação de Luaty Beirão e restantes activistas.
Por outro lado, quer queiramos quer não, Angola é um estado soberano, com ou sem ditadura, independente desde 1975, e por mais que se deseje derrubar uma ditadura, basta olhar para os exemplos ao lado (Líbia, Síria, Iraque) para apreender como recentes intervenções externas em nome de uma suposta democracia pouco mais fizeram para além do desencadear de guerras civis, onde facções de ambos os lados são armadas até aos dentes, ao ponto de provocarem a implosão de países inteiros entre chacinas em massa e o êxodo de milhões de pessoas.
E, independentemente das ligações entre Portugal e Angola, parece-me preferível reflectir sobre outros meios e soluções alternativas para o povo angolano, que não incluam o alimentar de paixões e movimentos revolucionários que, apesar de populares e facilmente romanceáveis (onde Luaty surge como o inevitável paladino das causas justas), são por demais voláteis num mundo termonuclear e sequioso do petróleo angolano. Porque, apesar de o parlamento não condenar o regime angolano, também não o favorece, sublinhando caber aos angolanos decidir sobre o seu futuro, sem que o Tio Sam venha distribuir gratuitamente granadas entre os dois lados da barricada, para depois sair de fininho esfregando as mãos de contente.