A reinvenção de Dilma

O ano que chega não será fácil para os brasileiros e será um teste à capacidade de Dilma, recém-eleita por uma margem mínima, para encontrar a via de regresso ao crescimento.

No seu discurso de posse, a 1 de Janeiro, Dilma mostrará se consegue lidar com todas as “frentes” Ueslei Marcelino/Reuters

“Dilma aplica programa de Aécio.” Com ou sem ponto de interrogação, a frase ocupou as primeiras páginas da imprensa brasileira nas semanas seguintes à sua eleição. É a conclusão mais inesperada de uma campanha que radicalizou a linguagem e as acusações mútuas a um ponto raramente visto.

Mas não é preciso muito para se perceber porquê. Não resulta apenas da magra vitória que Dilma obteve na segunda volta das presidenciais. Resulta, em primeiro lugar, da pura realidade de uma economia estagnada que já não aguenta as promessas de continuidade e de optimismo que dominaram o seu discurso.

A alternativa, como escreveram muitos analistas, é “crescer ou crescer”. O pânico maior é que as contas públicas levem as agências de rating a “desgraduar” o Brasil para níveis abaixo de investimento. Resultado: Dilma teve de agir (ou deixar agir) no sentido que o seu rival defendia. Um exemplo? A subida das taxas de referência do banco central três dias depois da sua reeleição, que Aécio Neves considerou como inevitável e que Dilma tinha rejeitado como desnecessária. Não havia outro remédio, com a inflação a subir para além do tecto máximo fixada pelo Governo (6,5%). Outro exemplo: os aumentos de alguns produtos essenciais, mantidos com preços artificiais, como os combustíveis ou a electricidade. Dilma fez campanha ainda a defender o seu “modelo económico” assente no consumo, na subida dos salários, numa taxa de desemprego baixa e na intervenção estatal na economia. Mas, passada a bonança da última década, quando os preços das commodities garantiam ao Brasil um crescimento sólido, o que resta para animar a economia passou a ser muito pouco.

Dilma também se rendeu à realidade (se é que se rendeu) graças à intervenção na praça pública do seu patrono, Lula da Silva, condicionando abertamente as suas escolhas para a equipa económica do próximo Governo. Com um só critério: é preciso retomar a confiança dos mercados e dos investidores. A decisão de Dilma foi nesse sentido. A Presidente já tinha demitido o seu ministro da Fazenda, Guido Mantega, dando um sinal de que as coisas poderiam mudar. Joaquim Levy, que o vai substituir, encaixa no perfil do “amigo dos mercados”. O novo ministro chegou a trabalhar com António Pallocci (até ao escândalo do “mensalão” o ministro da Fazenda de Lula, brilhante e bastante liberal), mas também tem uma longa carreira na banca. Veio do Bradesco, o segundo maior banco brasileiro, onde era economista-chefe. Dilma manteve o actual governador do banco central, cuja independência muitas vezes atacou. “Dilma escolheu como novo ministro da Fazenda um economista que pensa o contrário do que ela disse antes da eleição”, escreve a Folha de São Paulo. Aécio foi mais contundente: “É como se um chefe da CIA fosse nomeado para dirigir o KGB.”

Ajuste
Levy não esperou pela posse para anunciar ao que vinha: levar a cabo um “ajuste” para controlar as despesas do Estado. Os brasileiros já lhe arranjaram a alcunha de “Mãos de Tesoura”. O novo ministro da Fazenda já anunciou que, nos dois próximos anos, o superavit orçamental que este ano fica próximo de zero, contrariando a Lei das Directrizes Orçamentais, tem de regressar à regra anterior: 1,2 em 2015 e 2% no ano seguinte. É bom lembrar que, durante os mandatos de Fernando Henrique Cardoso e de Lula, apenas num ano (1997) esta regra não foi cumprida. O seu programa pressupõe que 2015 vai ser um ano difícil para garantir uma retoma em 2016. Prevê um novo ciclo de abertura da economia, reformulação da política de crédito, menos subsídios à economia e maior realismo tarifário no sector eléctrico.

Mas isto foi nas semanas seguintes à reeleição. Daí para cá, muita coisa aconteceu no sentido de reforçar a necessidade de um “ajuste”. A questão, aliás, nem é só essa. O que está hoje em debate no Brasil, mas também noutros países da América do Sul, é o modelo de desenvolvimento económico que deu bons resultados na primeira década do novo século, mas que as condições internacionais já não garantem. O “milagre” do crescimento assentou no longo período de alta dos preços das commodities, que o Brasil produz em larga escala, graças à entrada em cena da China e de um crescimento mundial que aumentou a procura. Esse modelo esgotou-se. Na mais recente reunião dos países ibero-americanos em Vera Cruz, no México, este foi um dos temas incontornáveis. E ninguém hoje ousa negar, a não ser por motivos ideológicos, que a situação na Rússia, com a queda infernal do rublo resultante do preço do petróleo, e a escassa margem de manobra de Moscovo para contrariar esta tendência, não acabará por se abater também sobre as economias latino-americanas. A crise de 1997, que nasceu na Ásia, atingiu a Rússia e depois o Brasil, é o espectro que hoje ensombra todas as análises.

Resta ainda o escândalo verdadeiramente colossal da Petrobras, a maior empresa brasileira, deteriorando a imagem do país junto dos investidores. Dilma quis reduzir o escândalo das “propinas” cobradas aos vencedores dos grandes concursos da petrolífera a meia dúzia de pessoas que não se portaram bem. O problema é que a procissão ainda vai no adro, as ligações ilícitas vão direitas ao PT (embora também a outros partidos), o endividamento da empresa é muito elevado e a queda do preço do petróleo não ajuda a tirar partido das reservas do pré-sal.

Finalmente, a Presidente tem um Congresso ainda mais fragmentado do que o anterior e precisa de uma base de sustentação que envolve um elevado número de partidos pequenos e médios, para além do seu aliado tradicional, o PMDB, que quererá aproveitar a fragilidade da sua vitória. Em suma, no curto prazo, Dilma tem à sua frente uma tarefa ciclópica. “Com um cenário turbulento no Congresso num ano em que se prevê um ajuste orçamental, acusações de corrupção contra parte da sua base aliada, maior fragmentação partidária e uma oposição mais forte, a Presidente terá um início de legislatura bem mais desafiador do que o primeiro”, escreve o diário de economia Valor. É uma boa síntese.

Espera-se com ansiedade o seu discurso de posse no primeiro dia do ano, no Palácio do Planalto, para verificar até que ponto a Presidente consegue lidar com todas estas “frentes” de uma maneira que garanta a coesão do seu governo e um programa de relançamento da economia que seja credível.

Mudança
O país entretanto mudou muito e essencialmente para melhor. Olhando para os resultados eleitorais distribuídos por estados, a divisão dos brasileiros não é entre pobres e ricos, entre os que temem perder a Bolsa Família e as elites que vivem bem, aparentemente indiferentes às desigualdades que ainda dominam a realidade brasileira. Um quadro publicado pelo Financial Times diz quase tudo o que é preciso saber. Nos estados em que Aécio ganhou (em alguns de forma esmagadora, como São Paulo) a arrecadação de impostos federais é de 800 mil milhões de reais. Os estados onde Dilma venceu pagam para o Orçamento federal um pouco menos de 400 mil milhões. Como disse Fernando Henrique Cardoso, a divisão maior do Brasil é entre aqueles, ricos ou pobres, que dependem do Estado e dos seus subsídios e os que prosperam sem esse apoio, vendo no Estado muitas vezes um entrave para as suas vidas.

Este retrato não constitui apenas um repto ao PT e a Dilma. Também o PSDB de F.H.C. tem de conseguir deixar de ser um partido fragmentado e ainda elitista, para conseguir ser uma força nacional (como o PT) capaz de mobilizar a nova classe média que Lula criou. Só o conseguirá fazer se ultrapassar as divisões internas, aceitando que o resultado de Aécio Neves, numa campanha muito mais forte do que alguma vez o PSDB conseguiu levar a cabo, tem de consolidar a sua liderança. 2015 será também o ano de teste para Aécio, com os olhos postos em 2018.

Nem tudo corre mal
O próximo ano vai ser também importante para a imagem do Brasil na cena internacional, que ainda não perdeu totalmente a aura do mais simpático dos BRICS. Perdeu apenas algum brilho. E, sobretudo, tornou-se muito mais dependente do que acontecer na economia global, nomeadamente nos Estados Unidos. A recuperação muito rápida da economia americana (maior do que as previsões de crescimento para os BRICS, à excepção da China) voltou a dar um poder enorme às suas decisões. O dólar vale cada vez mais em relação às moedas da América Latina, incluindo o real. Os olhos estão postos na FED e na sua intenção de subir, algures em 2015, as taxas de juro de referência. Só isto causa calafrios às economias emergentes. Dilma percebe o que se está a passar e os riscos que envolve. Há seis meses anulou uma visita de Estado a Washington em protesto contra o escândalo das escutas telefónicas da NSA americana. Em Novembro passado, na cimeira do G20 de Brisbane, mostrou-se disponível a Obama para remarcar a visita. Hoje, é o lado americano que a faz sofrer (um pouco) adiando a marcação da data com o argumento de que é necessário que haja uma agenda concreta e alguns acordos, nomeadamente em matéria de liberalização das relações comerciais. Obama também gostaria de um parceiro mais cooperante em relação às questões de segurança internacional. De qualquer modo, o Brasil, com a sua dimensão continental e as suas relações amigáveis com os vizinhos (não ameaça, nem é ameaçado por ninguém), será sempre um parceiro importante dos EUA, mesmo que muitas vezes rebelde. Do mesmo modo que o Planalto, seja qual for o seu ocupante, nunca deixará de negociar com o seu grande parceiro do Norte.

Quebrar o isolamento
Mas Dilma não tem apenas este problema nas suas relações externas. A integração da América do Sul sob a liderança brasileira (o grande objectivo de Lula) revelou-se muito mais complexa do que poderia parecer. O Brasil deixou-se ultrapassar pelos acordos de comércio bilaterais (fora do quadro das negociações de Doha da OMC) que estão a remodelar os termos de troca mundiais. Dilma tentou agora ressuscitar o Mercosul, procurando superar as dificuldades por que passa a Argentina ou a Venezuela de Maduro (é o quinto membro) e apelou a um esforço colectivo para ressuscitar a negociação de uma zona de livre comércio com a União Europeia (que anda a ser negociada há mais de 15 anos sem qualquer sucesso). Precisa de acenar aos países da orla do Pacífico (Colômbia, Chile e Peru) que se organizaram na “Aliança do Pacífico”, destinada a não perder o comboio do mercado asiático e a nova parceria que Obama quer negociar com os países da região. As iniciativas brasileiras para superar esta força centrífuga não têm tido muito sucesso. Será preciso quebrar este relativo isolamento, se o Brasil continua a querer afirmar o seu estatuto na cena internacional.

A grande questão, aliás, que se põe hoje à economia brasileira tem a ver com a sua capacidade de competir num mundo globalizado. As commodities impunham-se por si próprias na economia mundial. Algumas empresas privadas brasileiras, como a Embraer, terceira maior construtora de aviões civis, são actores mundiais. Pouco depois da sua eleição, Dilma foi inaugurar a nova sede da empresa que vai fabricar seis novos submarinos encomendados pela Marinha, um dos quais a propulsão nuclear. A sua capacidade nuclear está ao abrigo do Tratado de Não-Proliferação que assinou e que prevê o compromisso de apenas a utilizar para fins pacíficos. Mas Dilma não deixou de lembrar que o Brasil vai entrar num “clube selecto” dos poucos países que dispõem desta tecnologia. A Presidente quer mostrar como o Brasil continua a ser uma grande potência económica. Mas nada disto chega para um crescimento que não ande apenas ao sabor da volatilidade dos mercados de commodities e do que se passa nas grandes economias ocidentais. O problema que é preciso resolver também é a produtividade do trabalho, que se mantém estagnada há alguns anos. Se quer ser uma economia desenvolvida, “o Brasil precisa de garantir que amplos grupos da população tenham acesso à educação de qualidade, à qualificação e a trabalhos que paguem bem”, disse à BBC-Brasil Thomas Piketty, o homem de quem se fala, de visita ao Brasil para lançamento em português do seu livro O Capital no Século XXI. “Se você só aumenta o salário mínimo, mas não aumenta as qualificações dos trabalhadores e a sua produtividade, terá problemas em sustentá-lo.” Muitos economistas brasileiros dizem o mesmo.

Resta uma indústria virada para o mercado interno brasileiro, cujo proteccionismo não impulsionou qualquer esforço pela competitividade. É esse o elo fraco que vai ser preciso alterar através de um conjunto de reformas que exigem uma grande coragem política. Vozes mais pessimistas consideram que o Brasil não vai romper com a sua história económica, marcada pela alternância entre períodos de escasso crescimento e de crescimento um pouco menos escasso. Alfredo Valladão, que detém a cátedra Mercosul na Sorbonne, chamou a esta tendência “o voo da galinha”: “Faz muito barulho para levantar voo, mas volta a cair dez metros à frente.” Pode ser assim ou pode não ser assim.

Para além da Copa, que correu muito bem do ponto de vista da logística, mas que terminou com um humilhante 7 a 1 contra a selecção alemã, 2014 foi um ano de sinais do que pode ser o futuro. As grandes manifestações a exigir melhores serviços públicos podem voltar a qualquer momento. O que vale é que, como dizia recentemente numa conferência do IDN em Lisboa o académico Andrés Malamud, a democracia brasileira ganhou hoje uma solidez invejável. “É uma democracia com uma estabilidade à prova de bala. Um país que, três horas depois do fecho das urnas, pode anunciar os resultados de 140 milhões de eleitores, sem que haja uma só reclamação de fraude. Resistirá a qualquer coisa.”

Comentários

Os comentários a este artigo estão fechados. Saiba porquê.