80 anos de Verão

Os momentos chave da história dos verões em Portugal desde 1931.

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Mapa de Portugal
Não existem ondas de calor neste ano.

1931

Um momento na história da meteorologia em Portugal

O Verão de 1931 não foi nada de especial. Foi o quinto mais frio dos últimos 80 anos. Teve um Agosto miserável, com o termómetro muito abaixo do que seria normal para a época. A média das temperaturas máximas nesse mês foi de 25,2oC, a menor marca em oito décadas, sete graus a menos do que o recorde, que é de 2003.

Esse ano tem, porém, outro significado para a meteorologia em Portugal. É a partir de 1931 que se torna possível comparar e conjugar dados entre estações meteorológicas, de modo a obter-se um quadro credível para o país como um todo. “Em 1931 já há um número de estações suficientes para se fazer uma média nacional”, explica a climatologista Fátima Espírito Santo, da Divisão de Clima e Alterações Climáticas do Instituto Português do Mar e Atmosfera (IPMA).

Já havia observações sistemáticas anteriores, mas eram localizadas. As mais antigas de que se tem registo são do médico Diogo Nunes Ribeiro, feitas em Lisboa num curto espaço de tempo – entre Novembro de 1724 e Janeiro de 1725. É tida como a primeira série meteorológica obtida com instrumentos em toda a Península Ibérica.

Na Madeira, o naturalista inglês Thomas Heberden fez observações meteorológicas entre 1747 e 1753. Heberden deixou outros registos interessantes, como o relato de um sismo sentido no Funchal no dia 31 de Março de 1761 ou um cálculo da mortalidade na ilha da Madeira, com base num censo que levou a cabo em 1767.

No território continental, há dados também entre 1777 e 1785, deixados por Jaques Pretorius. Mas é a Marino Miguel Franzini (1779-1861), um militar da Armada, filho de um professor veneziano de Matemática trazido para Coimbra pelo marquês de Pombal, que cabe o mérito de ser um dos principais pioneiros da meteorologia e da estatística em Portugal.

Em 1815, Franzini começou a fazer anotações sobre o clima, a pedido do médico Bernardino Gomes, intrigado com a mortalidade elevada durante os Verões – contrariamente a hoje, em que se morre mais no Inverno. Deixou duas séries de dados, de 1815 a 1826 e de 1836 a 1859, com informações detalhadas sobre o estado do tempo, a temperatura, o vento, as tempestades.

Em 1853, surgiu o Observatório Meteorológico do Infante D. Luís, o primeiro em Portugal, construído na Escola Politécnica, em Lisboa. Nos anos seguintes foram instaladas outras estações, como as do Porto (1863), Coimbra (1865) e Montalegre (1879).

Embora haja séries de dados mais longas para estas estações, só a partir de 1931 é que a rede é considerada suficiente para traçar um retrato do país, pelo menos para a temperatura. Para a precipitação, a série comparativa começa em 1941. É mais ou menos nessa altura, em 1946, que nasceu o Serviço Meteorológico Nacional, juntando a meteorologia e a geofísica, e que depois de várias modificações se transformou no actual IPMA.

Para reconstituírem o clima para períodos anteriores, os climatologistas usam os dados pontuais das primeiras observações, mas também outros testemunhos, como relatos de comerciantes ou anotações de monges, além de sinais indirectos, como os anéis de crescimento das árvores ou outros.

Foi com reconstruções baseadas nesse tipo de fontes de informação que uma equipa de investigadores coordenada pelo climatologista Ricardo Trigo, da Universidade de Lisboa, conseguiu estudar o anómalo Verão de 1816. Foi um período frio e húmido na Europa e nos Estados Unidos, devido à erupção do vulcão Tambora, na Indonésia, no ano anterior. A Península Ibérica não escapou. Em Julho e Agosto, segundo os resultados do estudo publicados em 2009, as temperaturas estiveram dois a três graus abaixo da média entre 1871 e 1900. Foi o “ano sem Verão”.

Dois séculos depois, o de 1931 foi também para esquecer, sobretudo em Agosto. Nos 80 anos seguintes, Portugal experimentou de tudo: do frio extemporâneo à mais inclemente canícula, da chuva em excesso a longas e severas secas.

1949

O ano em que as senhoras deixaram as meias em casa

No dia 6 de Junho de 1949, o Diário de Notícias trazia na sua primeira página reportagens sobre a recuperação económica da bacia do Ruhr, na Alemanha, sobre um jantar de homenagem ao ex-secretário de Estado norte-americano George Marshall em Washington e mais um texto sobre o casamento do califa de Tetuão, em Marrocos. Também falava das comemorações dos 50 anos do Instituto de Assistência Nacional aos Tuberculosos e da inauguração do Bairro José Frederico Ulrich, em Olhão.

A única referência de que no dia anterior Lisboa enfrentara um calor infernal vinha a meio de uma notícia sobre o desfile anunciador da Feira Popular e a Batalha das Flores. “O calor, efectivamente, era de afligir”, escreveu o repórter, acrescentando que “alguns espectadores tiveram de ser socorridos”.

O assunto adormeceu, mas acordou no princípio de Julho. O país todo mergulhou numa onda de calor que ajudaria a fazer do Verão de 1949 o terceiro mais quente desde que há séries meteorológicas fidedignas em Portugal.

Os termómetros em Lisboa estiveram durante cinco dias acima dos 35oC e o assunto esteve na capa dos jornais em edições sucessivas. As notícias referem os lisboetas “em mangas de camisa, por soleiras de portas e bancos de jardim, sem o cachecol da gravata e suspirando por modelos paradisíacos de vestuário”. Falam também “na coragem com que muitas senhoras venceram a inexorável convenção do ‘parece mal’, deixando em casa as meias de seda ou de vidro”.

No dia 2 de Julho, um sábado, a região do Porto amanheceu quentíssima: às 9h a temperatura já ia em 31,9oC. Ao meio-dia, em Campo Maior estavam 41,1oC. Lisboa chegou aos 38,7oC. Na segunda-feira, dia 4, um “vento ardente”, trazendo a sensação de uma chuva de línguas de fogo, provocou o pânico na Fuzeta, Algarve. “O mulherio clamava que era o fim do mundo”, informava a reportagem do Diário de Notícias. Pelo menos até quinta-feira, dia 7, o calor continuava, com 41,5oC registados em Penela.

Não foi só Portugal a sofrer com a canícula. A onda de calor estendia-se por toda a Península Ibérica e em grande parte da Europa. Em Londres, a rega de jardins e campos de jogos chegou a ser proibida.

Ironicamente, o sol incandescente veio acompanhado do seu reverso: fortes trovoadas, que causaram estragos e mataram várias pessoas, apanhadas por raios ou “faíscas”.

Alguns agricultores rejubilaram, pois a chuva prometia acabar com uma prolongada seca, que já vinha do ano anterior. Foi um dos três períodos de grandes estiagens na década de 1940. A pior ocorrera entre 1943 e 1946, a seca mais longa e a segunda mais intensa nos 65 anos entre 1941 e 2006.

A despeito do calor e da falta de chuva, não há muitas notícias sobre incêndios florestais nessa altura. A explicação pode estar, em parte, na floresta em si. O país não estava tão arborizado como hoje e os matos estavam menos disponíveis para arder. “Havia um grande aproveitamento da biomassa”, explica Paulo Fernandes, do Departamento de Ciências Florestais e Arquitectura Paisagista da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Os matos eram reduzidos pelo pastoreio ou ceifados para uso como fertilizante na agricultura, para a cama do gado ou para combustível doméstico.

Outro factor são as condições que facilitam os fogos – a temperatura, a humidade e o vento. Os três são a base de um índice de risco de incêndio largamente utilizado a nível mundial. Paulo Fernandes coordenou um estudo, que aguarda publicação, no qual foram calculados os índices de incêndio entre 1943 e 2011. O ano de 1949 não aparece como particularmente extraordinário. Nos baldios e matas nacionais – únicas áreas para as quais há dados sobre fogos antes de 1980 – arderam 2062 hectares. Em 1962, o ano com piores condições a seguir a 2005, arderam 11 mil hectares nas mesmas áreas sob regime florestal.

Com ou sem fogos, 1949 teve um Verão escaldante. O calor regressou em força na última semana de Julho. O recorde de temperatura desse ano foi registado no dia 27 desse mês, na estação de Alvega, no Ribatejo: 45,5oC.

O calor manteve-se praticamente constante ao longo de todo o mês de Agosto, em que a média das temperaturas máximas em todo o país foi de 31,6oC. Lisboa registou 21 dias com as máximas acima dos 30oC. Foi o segundo Agosto mais quente desde 1931, perdendo apenas para o fatídico ano de 2003.

Foi preciso que passassem quase seis décadas para que houvesse um Verão em que a temperatura média ao longo de Junho, Julho e Agosto fosse tão elevada como em 1949. Os anos de 2004 e 2005 ocuparam as primeiras posições.

1966

O incêndio que matou 25 bombeiros

O fogo estava no seu segundo dia, incontrolável. Tinha deflagrado no dia anterior na Penha Longa e logo se alastrara por grande parte da serra de Sintra. Bombeiros de todas as corporações do distrito de Lisboa, e também de outros distritos, estavam mobilizados na tentativa de o controlar. Militares também. Naquela altura, na década de 1960, equipamento adequado, treinamento e preparação estavam longe de ser a norma no combate aos fogos florestais.

No dia 7 de Setembro, à noite, 25 militares do Regimento de Artilharia Antiaérea Fixa (RAAF) ficaram cercados pelas chamas. Morreram carbonizados.

Foi o pior acidente mortal de que há registo no combate a um incêndio florestal em Portugal. Mas não foi o único com as mesmas proporções. Em 1985, no dia 8 de Setembro, 14 bombeiros de uma mesma corporação perderam a vida num incêndio em Armamar, no distrito de Viseu. E no ano seguinte, mais 13 bombeiros morreram em Águeda.

Segundo dados da Autoridade Nacional de Protecção Civil, entre 1980 e 2013, morreram 214 bombeiros em serviço, dos quais 103 – quase metade – em incêndios florestais. Destes, 75 foram apanhados pelas chamas e 28 foram vítimas de acidentes de viação.

Bombeiros mortos em fogos florestais

Bombeiros mortos em fogos florestais

Fonte: Autoridade Nacional de Protecção Civil

O investigador Domingos Xavier Viegas, professor da Universidade de Coimbra e coordenador do Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais, tem ao longo dos anos chamado a atenção para uma das situações de maior risco que tem estado na origem de muitos dos acidentes com bombeiros: o chamado “efeito chaminé”. Trata-se de um fenómeno perigoso, mas previsível, no qual um incêndio na base de um declive gera correntes que sobreaquecem a vegetação que está mais acima, preparando o terreno para que as chamas avancem com enorme velocidade, quase como numa explosão.

Na prática, um único episódio pode resultar em vários mortos ao mesmo tempo, o que confere aos sinistros com bombeiros nos fogos florestais alguma dose de aleatoriedade – ou seja, não dependem muito da dimensão dos incêndios. “É aleatório. Um acidente mortal pode acontecer num incêndio que não seja de grandes proporções”, diz Xavier Viegas.

O investigador também alerta para o facto de as vítimas mortais dos fogos não serem apenas os bombeiros. “As pessoas desconhecem que há quem morra ao fazer queimadas”, exemplifica.

Em 2013, morreram sete bombeiros nos incêndios florestais.

1977

O verão mais frio numa década de verões frios

Quando se procuram os Verões mais frios em Portugal, há uma década que se destaca: a dos anos 1970. Em oito dos dez anos entre 1970 e 1979, a temperatura média de Junho, Julho e Agosto, em conjunto, ficou abaixo do valor hoje considerado como referência – a média dos 30 anos entre 1971 e 2000. Três anos – 1971, 1972 e 1977 – lideram a lista dos Verões menos quentes desde 1931.

O Verão de 1977 vence de longe o campeonato. Teve uma temperatura média de 18,6oC – com 2,6 graus abaixo do valor de referência. A média das temperaturas máximas só chegou a 24,6 oC, muito inferior aos 27,6 oC considerados normais. E a média das mínimas ficou-se pelos 12,6 oC.

A década de 1970, na verdade, encerra um período em que o planeta arrefeceu, depois de ter aquecido nas primeiras décadas do século XX. A descida no termómetro começou nos anos 1940, baixando cerca de 0,2 oC por década. Nos anos 1970, manteve-se estável, a um nível mais baixo, mas a partir de então subiu ainda mais rapidamente do que antes.

Teoricamente, com cada vez mais dióxido de carbono e outros gases com efeito de estufa a envolver a Terra, uma queda prolongada nas temperaturas só pode ser explicada por outros factores. Uma das teorias para aquele período mais frio está no aumento da concentração de aerossóis na atmosfera, devido sobretudo ao agravamento da poluição industrial na recuperação económica do pós-guerra.

“Os modelos [de simulação do clima] não conseguem reproduzir a descida após 1940 sem os aerossóis”, afirma Pedro Viterbo, director do Departamento de Meteorologia e Geofísica do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA).

Em 1963, a erupção do monte Agung, um vulcão na Indonésia, terá também tido um efeito arrefecedor sobre a atmosfera.

As alterações globais reflectiram-se em Portugal. Num artigo publicado este ano na revista International Journal of Climatology, juntamente com outros investigadores, a climatologista Fátima Espírito Santo identifica tendências claras, que são mais evidentes na Primavera e no Verão. Entre 1941 e 1975, no primeiro caso a média da temperatura máxima caiu 0,51 graus por década, para depois subir 0,80 graus por década entre 1976 e 2006. No Verão, o sinal é o mesmo: primeiro uma queda de 0,26 graus por década, depois uma subida mais acentuada, de 0,74 graus por década.

1987

Uma bandeira que ajudou a limpar as praias

Quando José de Almeida Fernandes, presidente do Instituto Nacional do Ambiente, teve contacto com uma campanha europeia embrionária para incentivar os municípios a não poluírem o litoral, ir à praia em Portugal era uma aventura. Esgotos drenavam livremente para o mar, o lixo acumulava-se no areal, havia poucos apoios e infra-estruturas, a vigilância era esporádica. Nesse ano de 1987, nem sequer era obrigatório o controlo regular da qualidade da água na costa.

A história da bandeira azul – o símbolo de excelência que então nascia e actualmente é hasteado em mais de 4000 praias na Europa – é, de certa forma, a história de como a experiência dos banhos de Verão mudou radicalmente desde aquela altura.

As primeiras bandeiras surgiram em praias francesas, em 1985. Dois anos depois a ideia – a cargo da então Fundação Europeia para a Educação Ambiental – foi incorporada pela Comissão Europeia nas actividades do Ano Europeu do Ambiente e multiplicou-se por mais países.

Almeida Fernandes trouxe-a para Portugal, juntamente com um parceiro estratégico, a Associação Naval de Lisboa, dirigida por Bernardo Mendes de Almeida, conde de Caria.

Na conferência de imprensa de lançamento do programa no país, a 11 de Maio de 1987, estavam dois membros do Governo. “Tínhamos grandes problemas nas praias”, recorda Carlos Pimenta, na altura secretário de Estado do Ambiente. “Havia o problema dos esgotos, dos lixos, enterrava-se a mão na areia e saía um osso de frango”, completa.

Alguns anos antes, em 1983, o ministro da Qualidade de Vida, Francisco Sousa Tavares deslocara-se ao Algarve para inteirar-se de um episódio de poluição nas praias. Técnicos dos seu ministério disseram-lhe que fariam análises à qualidade da água. Mas o ministro, ao ver tudo o que flutuava à superfície, perguntou: “E é preciso?”.

No lançamento da bandeira azul, em 1987, o secretário de Estado do Turismo também estava presente. O Governo precisava de um programa como aquele. Portugal, que acabara de entrar para a Comunidade Económica Europeia, beneficiava da derrogação de uma directiva sobre a qualidade das águas balneares. Em poucos anos, porém, o país seria obrigado a cumpri-la.

“Eu, como governo, estava a chatear permanentemente as câmaras municipais, as CCDR [comissões de coordenação e desenvolvimento regional]. Mas devia ser uma prioridade de todos, não funcionaria de cima para baixo, nem de baixo para cima”, refere Carlos Pimenta.

Quando se olha para trás, vê-se como as coisas mudaram. Ainda em 1993, uma em cada quatro praias tinha má qualidade da água – sobretudo com contaminação de origem fecal. Uma em cada sete nem sequer tinha análises regulares. Cerca de metade possuía qualidade boa e 6% eram apenas aceitáveis. Agora, o panorama é completamente diferente, com 92% das praias com qualidade excelente.

Praias com qualidade "excelente" (em %)

Qualidade da água

Fonte: Agência Portuguesa do Ambiente

Em grande parte, o que permitiu esta viragem foram as obras de saneamento. Em 1993, as redes de drenagem de esgotos serviam 61% da população e o tratamento apenas 31%. Agora, a drenagem chega a 81% e o tratamento a 78%.

Embora até hoje ainda não se tenha atingido a meta dos 90% – que estava prevista para 2006 –, a construção de redes de esgotos e estações de tratamento ajudou a limpar as praias, em particular junto das grandes aglomerações urbanas. Foram projectos que envolveram o Governo e as autarquias. Mas não era suficiente.

“A bandeira azul foi essencial por que fez a ligação que faltava. Foi um cimento a ligar a sociedade civil ao nível local e central. Pôs os cidadãos na fotografia”, diz Carlos Pimenta.

“As pessoas não tinham consciência de que a praia tinha valor. Não havia esta percepção”, acrescenta Maria Teresa Goulão, ex-vice-presidente da Associação Bandeira Azul da Europa (ABAE), que gere o galardão em Portugal. “Nós criámos esta consciência.”

A ABAE tomou conta da bandeira azul a partir de 1990, quando a associação foi fundada. A própria fundação europeia que coordenava o programa a nível internacional preferia vê-lo integralmente nas mãos de uma organização não governamental – depois dos primeiros anos em que o Governo assumira algum protagonismo.

Desde então, embora com alguns altos e baixos, os números cresceram substancialmente. No ano inaugural, 1987, foram hasteadas 71 bandeiras em praias costeiras. Agora em 2014, são 280 praias costeiras e 18 fluviais.

Número de bandeiras azuis em praias costeiras

Bandeiras azuis

Fonte: Associação Bandeira Azul da Europa

Não foi um caminho sem alguma turbulência. Houve boicotes, houve bandeiras que foram retiradas durante a época balnear e houve outras que nem sequer chegaram a ser içadas. Em 1992, o Algarve e a Madeira ficaram de fora, porque greves no ano anterior tinham impedido a recolha de análises suficientes à qualidade da água. Foi o ano com menos bandeiras: apenas 50.

Hoje, o programa está em parte a chegar a um limite. Todos os concelhos do litoral já se candidatam à bandeira azul, excepto dois: Sintra e Marinha Grande. “Já estamos quase no pleno costeiro”, afirma Catarina Gonçalves, coordenadora nacional do programa na ABAE. O número de praias com bandeira azul no litoral “pode ainda crescer mas não muito”.

Onde ainda há espaço para muito mais é nas praias fluviais. “O interior tem muito para crescer. Em 1998 tínhamos só uma bandeira azul, agora temos 18”, explica Catarina Gonçalves. “A dificuldade é conseguir qualidade da água excelente”, completa.

A qualidade da água é uma das quatro áreas em que uma praia tem de ser excelente para ser galardoada. Representa cinco dos 32 critérios de atribuição. Os demais referem-se à informação e educação ambiental, à gestão ambiental e a segurança e serviços.

Alguns dos principais critérios para atribuição da bandeira azul

Critérios bandeiras azuis

Fonte: Associação Bandeira Azul da Europa

Conseguir que a água das praias tivesse qualidade, no entanto, foi talvez a tarefa mais difícil. Ao funcionar como “cenoura” para os municípios, a bandeira azul terá tido um efeito incentivador neste domínio. “Pode ter sido o motor para a qualidade que temos hoje nas praias”, diz a coordenadora nacional do programa.

A associação ambientalista Quercus também lançou, em 2003, o seu prémio às praias limpas – as praias de ouro – em que a exigência central é ter água com qualidade máxima ao longo de cinco anos consecutivos. Dos 543 pontos da costa oficialmente designados como “zonas balneares” em 2014, 355 são “praias de ouro” e 270 têm a bandeira azul.

A situação hoje é muito diferente da de há 27 anos, quando nasceu a bandeira azul. De certa forma, a praia, que era apenas um bem comum de uso desregrado, uma espécie de território de ninguém, passou a estar associada a uma série de responsabilidades. Nas palavras de Maria Teresa Goulão, mudou a forma como nos relacionamos com os banhos de Verão: “Hoje o que importa não é como as pessoas vão à praia, é o que as pessoas exigem da praia.”

Bandeiras azuis em 2014

1988

Nesse ano choveu em Junho como se fosse Inverno

Nunca choveu tanto em Junho. A precipitação acumulada ao longo dos 30 dias do mês chegou aos 118 milímetros – um valor típico para um mês de Dezembro, no auge do Inverno. “Esta quantidade de chuva em Junho é brutal”, corrobora Fátima Espírito Santo, da Divisão de Clima e Alterações Climáticas do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA).

Com esta água toda em Junho, nem mesmo o Agosto praticamente seco que veio a seguir salvou 1988 de se tornar no ano em que mais choveu ao longo do Verão, desde 1931. Em 1974, São Pedro tinha sido ainda mais inclemente em Junho, despejando 120 milímetros de água ao longo do mês. Mas depois fechou a torneira.

Em 1988, não. Em Junho choveu muito e em Julho também, sobretudo da Região Centro para cima. Em Bragança, entre 1 Junho e 31 de Agosto, houve 26 dias com chuva – o que dá uma média de dois dias por semana.

No final, o Verão encerrou com 164 milímetros de precipitação, cerca de um quinto da chuva que cai normalmente num ano em Portugal. Sem surpresas, a temporada ficou na equipa dos Verões mais frios, com uma temperatura média de 20,4 graus, ou 0,8 graus abaixo do normal.

1996

O ano mais seco

Com apenas um quarto da chuva que normalmente cai entre Junho e Agosto, o Verão de 1996 foi o mais seco desde 1941. Em três meses, caíram apenas 15 milímetros de precipitação – um valor que facilmente se atinge numa hora de chuva forte.

O Verão extremamente seco teve lugar quando o país ainda tinha fresco na memória uma das suas principais secas, a de 1994-95. A estiagem tinha começado no princípio de 1994 e durou quase dois anos inteiros em Lisboa (22 meses), em Évora e em Beja (20 meses). Em todo o território a sul do Tejo, a falta de chuva não apenas foi longa como também intensa. Beja amargou 11 meses sob seca classificada como “severa” ou “extrema”. A situação só foi superada quando voltou a chover no Outono.

Os anos 1990 foram pródigos em secas, com três períodos de chuva em falta: 1991-92, 1994-95 e 1998-99. Mas não foram as piores situações que o país viveu. Um estudo realizado por três investigadores do IPMA – Vanda Pires, Álvaro Silva e Luísa Mendes – comparou os episódios ocorridos em 35 estações meteorológicas do país. Algumas delas registaram um número elevado de secas: 28 em Beja, 25 em Évora, 23 no Porto e 21 em Lisboa.

As situações mais dramáticas ocorreram em 1943-46 e em 2004-06. A primeira destas duas graves secas chegou a durar 38 meses – um pouco mais de três anos – no Porto, 29 meses em Évora e Beja e 26 meses em Lisboa. Em metade do país, prolongou-se por dois anos.

A de 2004-06 foi quase tão longa como a da década de 1940, mas ainda mais intensa. Todo o território continental chegou a estar sob seca “severa” ou “extrema” – uma situação inédita. “Pode-se afirmar que a seca de 2004-06 foi a situação de seca mais intensa em termos de extensão territorial dos últimos 65 anos”, escreveram os investigadores, num artigo publicado em 2010.

Em 2005, a prolongada estiagem contribuiu para que os incêndios devastassem 339 mil hectares de floresta – o segundo pior ano, depois de 2003. Em 1996, foram 89 mil hectares. Entre ambos, uma diferença importante: o Verão de 2005 foi o mais quente desde 1931; 1996 é o décimo mais quente.

2003

Os fogos indomáveis e as mortes invisíveis

Os incêndios já tinham começado a meio do mês. Mas o que deflagrou a 27 de Junho de 2003 em Silvares, Fundão, na serra do Açor, foi o primeiro a sinalizar uma época que seria trágica a todos os níveis. Durante dias, as chamas consumiram tudo o que encontraram pela frente, quase 20 mil hectares de florestas e matos ficaram carbonizados.

A onda de calor de 2003

Mapa Portugal

Fonte: IPMA

Vinte mil hectares num único incêndio parece um número anormal. No entanto, nas duas semanas seguintes sucederam-se fogos com a mesma ordem de grandeza. A razão estrutural era a própria floresta, mal gerida e abandonada à sua própria mercê. Não resistiu a um factor conjuntural inultrapassável: a maior onda de calor da Europa ocidental nos últimos 500 anos.

Durante mais de duas semanas, as temperaturas estiveram em níveis sufocantes. Em Portugal, a onda de calor começou a 29 de Julho e só terminou a 14 de Agosto. Na definição da Organização Meteorológica Mundial, um período é caracterizado como onda de calor se a temperatura média está mais de cinco graus acima da média, durante pelo menos seis dias consecutivos.

No interior do país, a onda chegou a durar 17 dias. No dia 1 de Agosto, na Amareleja, no interior do Alentejo, os termómetros atingiram a marca histórica de 47,3oC. E em Portalegre, a madrugada desse mesmo dia foi como se o sol estivesse a pino: 30,7 oC de temperatura mínima – um novo recorde em todo o país. Em vários pontos do território continental foram também quebrados recordes locais: 42 oC em Lisboa, 39,5 oC no Porto, 44,9 oC em Elvas, 45,4 oC em Beja.

A floresta ardeu como palha. As regiões do Médio Tejo, Alto Alentejo e Algarve foram severamente castigadas, com incêndios de proporções monstruosas. Em Nisa, arderam 41 mil hectares; em Proença-a-Nova, 36 mil; em Portimão, 26 mil; na Chamusca, 22 mil; em Silves, 15 mil.

Áreas ardidas

Fonte: Instituto da Conservação da Natureza e Florestas

Os incêndios lavraram sem dó, nem piedade, nem controlo. No dia 3 de Agosto, o Governo decretou o estado de calamidade pública e a Comissão Europeia prometeu auxílio financeiro, quando os prejuízos já eram estimados em 1000 milhões de euros.

No princípio de Setembro, cerca de três semanas depois da onda de calor, quando o inferno parecia ter sido ultrapassado, os fogos regressaram em força e arrasaram 28 mil hectares só em Monchique num brutal incêndio.

Terminado o Verão, o saldo final sobre a floresta tinha ultrapassado os piores pesadelos: naquele ano de 2003 arderam nada menos do que 425.839 hectares de matos e povoamentos florestais, quase duas vezes e meia o recorde anterior, que cabia a 1991, com 182.486 hectares.

Enquanto as câmaras de televisão estavam hipnotizadas pelas labaredas, a onda de calor de 2003 foi deixando uma outra marca, insidiosa e letal. Em duas semanas, houve quase dois mil óbitos a mais do que seria de se esperar naquele período. Sabe-se que a maioria era de idosos, que acabaram por sucumbir a doenças agravadas pelo calor. Mas são mortes sem nome, invisíveis. Não se consegue dizer quem de facto perdeu a vida devido ao calor. A contagem é estatística, feita a posteriori.

Em França, foi mais visível o poder mortal daquela vaga de dias quentes – que se estendeu por toda a Europa ocidental. As autoridades notaram que algo de anormal se passava quando começaram a faltar caixões. Morreram cerca de 15 mil pessoas no país. Na Itália, foram 20 mil. Em toda a Europa, a cifra atingiu as 45 mil vítimas – o que então colocou aquela onda de calor como o acidente natural mais mortífero no continente europeu.

A onda de calor de 2003 na Europa

Mapa Europa

Fonte: Direcção Geral de Saúde

Estudos posteriores classificaram o Verão de 2003 como o mais quente na Europa nos últimos 500 anos – título que mais tarde perderia para 2010, quando uma avassaladora onda de calor sobre o Leste, em particular a Rússia, matou 55 mil pessoas.

Apesar das suas consequências, o Verão de 2003 – considerando Junho, Julho e Agosto – não foi o mais quente em Portugal, mas sim o quinto a seguir a 2005, 2004, 1949 e 2010. No entanto, aquele Agosto em particular foi o mais candente. A média das temperaturas máximas em todo o país foi de 32,2 oC, quando o normal para aquele mês seria 28,8 oC.

“Pode não ter sido o Verão com maior temperatura média. Mas foi o que teve a maior e mais extensa onda de calor”, explica Fátima Espírito Santo, da Divisão de Clima e Alterações Climáticas do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA).

Foi um ano que mexeu com tudo. O Governo lançou uma estratégia para reestruturar a floresta, prevenir os fogos e combatê-los melhor. Ao mesmo tempo, na área da saúde, surgiram os planos de contingência para as ondas de calor, destinados a reduzir o seu impacto na mortalidade.

As medidas eram necessárias, mas não conseguiram evitar tudo. Dois anos depois, os incêndios varreram 339 mil hectares de matos e florestas, deixando no país uma nova cicatriz profunda. E os portugueses continuaram a morrer com calor, embora em menor número: em três ondas de temperaturas elevadas depois de 2003 (2006, 2010 e 2013), houve um total de 3444 óbitos adicionais em relação ao esperado.

Os efeitos do calor

2005

O Verão mais quente desde 1931

Imagine os três meses de Verão com o termómetro a atingir, todos os dias, sem falhas, os 30,5oC. Esta é a imagem virtual do Verão de 2005 – o mais quente em Portugal desde 1931. Aquele valor representa a média das temperaturas máximas ao longo dos meses de Junho, Julho e Agosto.

Curiosamente, 2005 teve um Inverno rigoroso, com duas ondas de frio em Janeiro e Fevereiro e recordes de temperaturas baixas batidos nos primeiros dias de Março. Em Montalegre e na Guarda, os termómetros desceram a -10oC, nas Penhas Douradas a -12 oC.

O Verão trouxe o oposto, com duas ondas de calor logo em Junho e um Agosto também extramente quente.

Áreas ardidas

Fonte: Instituto da Conservação da Natureza e Florestas

O país mal se recompusera das catástrofes de 2003 – 426 mil hectares de área ardida e quase dois mil óbitos devidos ao calor –, quando o inferno voltou. O país voltou a arder – ou pelo menos aquilo que ainda não tinha sido consumido pelas chamas em 2003. Foram 339 mil hectares de área ardida, um valor tão catastrófico como o registado dois anos antes.

Os fogos começaram em Junho, lavraram com grande força em Agosto e estenderam-se por Setembro e até Outubro, quando ainda consumiram 15 mil hectares de floresta.

Costuma-se dizer que o mapa dos incêndios de 2005 é uma espécie de negativo do de 2003. Mas os dois anos conservam diferenças. “Em 2003 os fogos foram bastante mais localizados”, afirma o investigador José Miguel Cardoso Pereira, do Instituto Superior de Agronomia. As maiores áreas ardidas concentraram-se no Médio Tejo e no Algarve. “Em 2005, foram mais generalizados por todo o território a norte do Tejo, excepto o que tinha ardido em 2003”, completa.

Além das condições da atmosfera em si, havia um factor determinante para o calor e os incêndios de 2005: a avassaladora seca que começara em 2004. No auge do Verão, em Julho e Agosto, todo o país estava em seca “severa” ou “extrema”.

A humidade no solo é um dos factores que contam para as temperaturas no Verão. Com mais chuva, parte da energia do sol é direccionada para a evaporação da água no solo. Há também mais probabilidade de ocorrência de nuvens baixas, reduzindo a insolação.

Sem chuva, os raios solares que chegam ao solo acabam por ser mais facilmente irradiados de volta como calor, aumentando a temperatura da atmosfera. “A excepcionalidade de 2005 foi a seca”, afirma Pedro Viterbo, director do Departamento de Meteorologia e Geofísica do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA).

O Verão desse ano foi o segundo mais seco desde 1941, atrás apenas do ano de 1996.