Voltámos a poder entrar na obra-prima do rococó português

Palácio do Raio foi renovado para acolher centro interpretativo da Misericórdia de Braga. É a oportunidade para conhecer uma peça única da arquitectura nacional

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Provedor da Santa Casa Marco Duarte
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Já conhecíamos este desenho. A concha que embeleza a lateral da porta do salão principal do palácio do Raio encontra-se também na sua fachada principal. E, no entanto, era difícil reparar nela até agora. Décadas de utilização do edifício pelos serviços do hospital de Braga tinham-no descaracterizado. Muitos dos pormenores imaginados, há mais de 250 anos, por André Soares, passavam despercebidos, entre paredes falsas, tubagens e material hospitalar. A riqueza do monumento barroco regressa agora, em todo o seu esplendor, fruto de uma recuperação que permitiu reabilitá-lo integralmente, passando a acolher o centro interpretativo das memórias da Santa Casa da Misericórdia de Braga.

As conchas e outros motivos marinhos são uma assinatura inconfundível de Soares (1720-1769), o mestre do barroco e do rococó que mudou a face de Braga e do Minho. A renovação do palácio do Raio permitiu limpar e tornar esses elementos mais visíveis, não só na porta do salão principal, como na entrada da escadaria monumental de acesso ao piso superior. A própria fachada, que nunca deixou de encarar a cidade, tem hoje um brilho novo. E é aí que se encontram os motivos para que o historiador de arte Eduardo Pires de Oliveira tenha classificado o edifício como “a obra-prima do rococó português” na arquitectura civil.

Apesar de pequeno nas duas dimensões, o palácio destaca-se pela "qualidade e quantidade de motivos decorativos que ornam a sua fachada", sobressaindo uma porta central ricamente trabalhada e também das 11 janelas divididas pelos dois pisos. Os ornatos são assimétricos, dando ao edifício uma dinâmica e um dramatismo que são comuns na obra do arquitecto bracarense.

André Soares está em destaque no centro interpretativo da Misericórdia de Braga, que lhe dedica uma das suas salas. Ao seu lado está outro nome marcante da arquitectura da cidade, Carlos Amarante (1748-1815), que está ligado à história da Santa Casa por ser o autor da fachada neoclássica do hospital e da igreja de S. Marcos.

“A ideia é que quem vem ao palácio tenha também curiosidade de ir conhecer Braga, através das obras destes dois autores”, explica Manuela Machado, coordenadora do centro interpretativo. Ali é possível encontrar uma planta de Braga, sobre uma grande mesa em madeira, de onde saem uma espécie de gavetas, nas quais se encontram localizadas e legendadas todas as obras dos dois arquitectos na cidade – como a casa da Câmara ou o paço episcopal, de Soares, ou o Bom Jesus, de Amarante.

A reabilitação do palácio do Raio não recuperou apenas o esplendor barroco da obra. O edifício teve uma segunda campanha marcante, que aconteceu depois de, em 1853, este ter sido adquirido por Miguel José do Raio – que acabou por dar o nome com que definitivamente o edifício passou a ser conhecido, bem como à artéria que, por esse tempo, a sua influência na cidade permitiu que se abrisse mesmo defronte da fachada.

Este empresário regressava então a Braga depois de ter enriquecido em Belém do Pará, no Brasil, e estava disposto a mostrar o poder da sua fortuna e é nessa altura que são colocados os azulejos que dão o tom azul à fachada, bem como uma porta de vidros que separa o átrio da caixa de escadas. É também da mesma época a pintura da caixa de escadas com imagens naturalistas, atribuídas a Pereira Júnior, um artista que trocou, naquela altura, Lisboa por Braga, depois de ter pintado também parte da decoração do edifício da Câmara da capital. A iluminar essa área nobre do edifício está um extraordinário lanternim, encimado por uma cúpula, que acrescenta grandeza à construção, que se prolongará nos tectos e paredes decoradas dos salões do piso superior.

Nada disto era realmente visível até há bem pouco tempo. Desde 1884, quando a Misericórdia de Braga comprou o palácio, que o mesmo passou a integrar o complexo do hospital S. Marcos. Desde então, e até 2011, quando o S. Marcos fechou definitivamente para dar lugar ao novo hospital de Braga, a jóia do rococó português recebeu vários serviços da unidade hospitalar que acabaram por descaracterizar e degradar o seu interior.

A obra feita ao longo do último ano e meio recupera a sua riqueza e permite começar a dar novamente vida a uma quarteirão da cidade que, desde a saída do hospital, tem vivido tempos de crise, com grande parte das lojas de comércio e os serviços que existiam à volta da unidade de saúde a fecharem em virtude da deslocalização. “Estamos agora a criar condições para recuperar o resto do complexo”, avança o provedor da Santa Casa de Braga, Bernardo Reis.

Ao todo, o complexo do S. Marcos tinha 47 mil metros quadrados, que são excessivos para as necessidades da Misericórdia. Além do palácio do Raio, a instituição prevê transformar o bloco hospitalar construído nos anos 1960 numa unidade de cuidados continuados. Os restantes edifícios deverão ser arrendados a entidades externas, havendo ideias para a criação de um hotel, por exemplo, e de outros serviços ligados ao sector da saúde.

A reabilitação do palácio foi possível com o recurso a fundos comunitários, que pagaram 70% dos 4,2 milhões de euros investidos na obra. Contudo, esse apoio europeu coloca agora problemas à gestão do espaço, admite Bernardo Reis. “Durante cinco anos não podemos cobrar entrada e este espaço terá uma despesa relativamente grande”, explica o mesmo responsável. Os cinco postos de trabalho criados, mais as despesas com conservação a manutenção têm um orçamento anual estimado de 100 mil euros.

É, por isso, de forma gratuita que o palácio do Raio pode ser visitado. Além da sala dedicada a André Soares e Carlos Amarante, há mais nove salas, onde se aborda a história da Misericórdia de Braga e do hospital S. Marcos, bem como o espólio da instituição, com peças que vão desde o seu acervo documental, porcelanas e pinturas, passando por têxteis de utilização em serviços religiosos (onde se destaca um frontal bordado a ouro da China), e escultura, onde há peças que remontam ao século XVII.

Há ainda uma importante secção de arte sacra, onde está exposto o relicário, com o Santo Lenho, usado na procissão do Senhor da Cana Verde, durante a Semana Santa de Braga. De resto, essas cerimónias religiosas têm a sua própria sala no centro interpretativo, onde se encontra, por exemplo, um balandrau dos icónicos Farricocos, que percorrem a cidade na quinta-feira antes da Páscoa.

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