Vistos gold no mar

Legislação recente levanta fundadas dúvidas sobre as consequências de um regime de licenciamento sem o necessário sistema de salvaguardas ambientais.

Contrariamente ao que o título poderia indicar, a presente crónica não versa sobre a realidade que recentemente nos assaltou associada à venda de títulos de residência a troco de moeda com as consequências que se conhecem deste escândalo para a imagem do país. Trata antes de um tema que tem vindo a ser desenvolvido de forma bastante menos visível, mas não menos importante, ou seja, o do licenciamento de atividades no mar e as suas consequências para a sociedade.

É hoje praticamente consensual que o tão falado regresso de Portugal ao mar tem de passar necessariamente pelo desenvolvimento de indústrias que explorem e aproveitem os vastos recursos que o mar português contém e desenvolvam tecnologias inovadoras para esses processos. É igualmente consensual que existem entraves sérios ao desenvolvimento dessas atividades e que um desses entraves é o da fragmentação de competências no Estado com a consequente burocracia associada ao licenciamento de atividades.

Assim, os documentos estratégicos sobre o mar apontam a necessidade de uma coordenação ao mais alto nível para os assuntos do mar, bem como de criação de mecanismos facilitadores e promotores das diversas atividades. Muitos portugueses sentem na pele quão difícil é investir, por exemplo, em aquacultura, colocar uma simples embarcação no mar, cumprindo todas as licenças e encontrando pontos de acesso adequados, encontrar praias naturais livres do ruído de embarcações ou motas de água, licenciar a venda das famosas bolas de Berlim ou mesmo obter os necessários licenciamentos para fazer investigação científica no mar.

Assim, uma prioridade transversal às iniciativas recentes de promover um pensamento estratégico sobre os usos do mar é a necessidade de criar um sistema de ordenamento das atividades marítimas que, de acordo com as boas práticas internacionais, deve cumprir um conjunto de pressupostos essenciais: 1. Salvaguarde da degradação o ambiente marinho; 2. Permita a recuperação dos sistemas já degradados; 3. Identifique e ordene os locais propícios ao desenvolvimento das diferentes atividades; 4. Promova um sistema de licenciamento simplificado mas responsabilizador; 5. Garanta os necessários estudos de impacto ambiental associados a esses licenciamentos; 6. Promova a preservação do valioso capital natural marinho; 7. Associe aos novos usos do mar a criação de um fundo para a investigação científica, a conservação da natureza e a salvaguarda dos interesses das futuras gerações.

A este propósito, merece referência o Fundo do Petróleo da Noruega (hoje o Fundo Governamental Global de Pensões) que encerra todos os excedentes resultantes da exploração do petróleo norueguês e garante às futuras gerações uma compensação pelo uso pelas gerações atuais de um recurso não-renovável.

No entanto, apesar deste conjunto de pressupostos e de boas práticas, a recente legislação sobre esta matéria levanta fundadas dúvidas sobre as consequências de um regime de licenciamento sem o necessário sistema de salvaguardas ambientais, sociais e até económicas (na perspetiva de longo prazo) que é necessário promover. Foi aprovada uma lei de bases do ordenamento do espaço marítimo que deveria ser um mecanismo de valorização do património e de desenvolvimento de um modelo de aproveitamento dos recursos eficaz e responsável, tendo como referência o desenvolvimento sustentável e a defesa assertiva do património natural marinho.

No entanto, essa mesma lei de bases quebra com os instrumentos de ordenamento existentes, define, no essencial um regime de licenciamento, e toma como objetivo principal a dimensão económica, não cuidando devidamente de assegurar as necessárias salvaguardas ambientais, nem de incorporar convenientemente a dimensão social (não nos podemos esquecer que as comunidades ribeirinhas são, em Portugal, parte integrante da identidade nacional).

Esta lei da Assembleia da República remete para legislação específica a ser aprovada pelo Governo os detalhes da implementação deste sistema sem definir no entanto de forma clara as balizas pelas quais essa legislação se deve guiar. Sendo conhecido o interesse na exploração, por exemplo, da aquacultura ou dos minerais dos fundos marinhos, é essencial que o licenciamento destas e outras atividades obedeça às melhores práticas internacionais, rejeite facilitismos nos compromissos ambientais, garanta o retorno, sem exceções, para um fundo de longo termo, salvaguarde o interesse coletivo, estabeleça prazos de licenciamento razoáveis e esteja particularmente atento a possíveis promiscuidades entre governo, entidades públicas e empresas, dados os elevados valores potenciais destes contratos.

A não ser assim, podemos estar daqui a uns tempos com novos escândalos entre mãos desta vez relacionados com os negócios no mar. Este é demasiado importante para Portugal para que nos permitamos não estar atentos às profundas alterações em curso no ordenamento e licenciamento no mar, com as necessárias consequências para a imagem do país. Estarão garantidos os pressupostos das melhores práticas internacionais? Fica a preocupação e o alerta.

Emanuel Gonçalves é biólogo e professor no ISPA-Instituto Universitário


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