O mito dos índios

Até hoje, não houve um único defensor de que as áreas protegidas são um problema económico para as populações residentes que aceitasse organizar um referendo para desclassificar uma única área protegida.

A comissão para a fiscalidade verde diz: “‘Os governos municipais e/ou regionais – atores públicos – suportam em diversas situações custos de gestão e custos de oportunidade associados às políticas de conservação’ e que ‘Estas áreas (…) podem introduzir significativas limitações do uso do solo, implicando, por exemplo, a perda de oportunidades de desenvolvimento’”, tal como referi num meu artigo anterior.

Esta é apenas a enésima variação do mito da reserva de índios associado às áreas protegidas, que muitos autarcas, e outros, exploraram, com bastante proveito, mas que não resiste a qualquer análise minimamente fundamentada.

Muitas vezes, enquanto responsável no Instituto da Conservação da Natureza (nas suas múltiplas designações), fui confrontado com esta ideia de que as áreas protegidas eram um problema gravíssimo para as populações locais e que, por isso, o Estado central deveria ressarcir as populações residentes (leia-se, em muitos casos, aumentar o orçamento à disposição do senhor presidente de câmara).

Este argumento serviu de mote a uma chantagem sobre o Estado central, usada, por exemplo, pelos autarcas do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina, e o Instituto da Conservação da Natureza ia pagando carros de lixo e portinhos de pesca em vez de gastar os parcos recursos da conservação a fazer conservação da natureza.

Nas primeiras vezes em que fui confrontado com este absurdo, fiz o que faço habitualmente: tentei ir à procura da racionalidade do argumento. E fiz o que me parece normal: comparei o desempenho económico das economias concelhias, dentro e fora das áreas protegidas e áreas classificadas.

Fiz uns mapas com o poder de compra concelhio, sobrepondo-o com as áreas classificadas. Nenhuma conclusão era possível: nem os concelhos com mais baixo poder de compra estavam dentro de áreas classificadas (por exemplo, Ribeira de Pena), nem o facto de haver concelhos dentro das áreas protegidas os impedia de ter dos maiores poder de compra do país (por exemplo, Cascais), nem era possível ter qualquer padrão de relação entre o poder de compra e a classificação de áreas por razões de conservação da natureza.

Os mapas foram criticados, aliás justamente, por serem um retrato parado no tempo, e não avaliarem a evolução do poder de compra. Fiz mais uns mapas, comparando o poder de compra concelhio em diferentes momentos e avaliando se o padrão de evolução tinha alguma relação com as áreas classificadas.

Os resultados são igualmente inconclusivos e, a haver alguns indícios, seriam que uma boa parte dos concelhos com maior crescimento do poder de compra até coincidia com os concelhos que tinham áreas protegidas há mais tempo (Aljezur ou Alcoutim, por exemplo), partindo de valores bastante baixos do índice do poder de compra.

É completamente demagógico dizer que esse aumento do poder de compra concelhio se deve a esse factor, coincidência não é forçosamente relação de causa-efeito, mas o que ficou absolutamente claro é que não havia qualquer demonstração dos tais efeitos económicos negativos para as populações das áreas protegidas.

A partir daí, e vendo que, apesar das evidências, o argumento continuava a ser usado de forma totalmente absurda (Jorge Sampaio, enquanto Presidente da República, usou-o explicitamente numa das suas visitas a áreas protegidas), passei a responder a esse argumento de uma forma mais simples: façam um referendo para desclassificar a área protegida, nada o impede.

Até hoje, não houve um único dos tais defensores de que as áreas protegidas são um problema económico para as populações residentes que aceitasse organizar um referendo para desclassificar uma única área protegida.

Mesmo para desclassificar o Centro Histórico de Coruche (sim, o Centro Histórico de Coruche era uma área protegida ao abrigo da legislação da conservação da natureza), foi preciso aproveitar um novo regime jurídico de conservação e introduzir uma norma transitória que fazia caducar automaticamente essa classificação (várias outras que só existiam no papel), no caso de não serem adoptadas determinadas acções.

E, mais que isso, ao finalmente libertar-se o poder local do parecer prévio do Estado central para criar as suas próprias áreas protegidas locais (na mesma revisão do regime jurídico da conservação), foram criadas mais de uma dezena de áreas protegidas locais e algumas mais estão em preparação.

Tenho poucas dúvidas de que o pagamento dos serviços de ecossistema associados a uma gestão efectiva e real do território e a progressiva evidência do valor económico da conservação do património matarão a utilidade do recurso ao mito da reserva de índios.

Tal como, aliás, aconteceu com a conservação do património cultural.

O Mosteiro da Batalha foi vendido em hasta pública, no século XIX, para o aproveitamento da sua pedra. D. Fernando, um príncipe alemão culto e rei consorte de Portugal, felizmente resolveu as coisas de modo diferente e impediu o uso do mosteiro como pedreira.

Hoje ninguém tem o desplante de defender que as populações da Batalha sejam compensadas pelas perdas económicas criadas pela classificação do Mosteiro da Batalha, independentemente de ser verdade que a proximidade do mosteiro implica uma regulamentação que visa defender a sua integridade.

Penso que é escusado explicar por que razões toda a gente consideraria uma idiotia compensar as populações da Batalha pelas restrições impostas pela presença do mosteiro.

É pena que um bom documento, como é o relatório da fiscalidade verde, ainda faça eco de uma tolice destas, apenas por falta de comparência na discussão pública dos actores institucionais do sector, quer públicos, quer privados.

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