As lágrimas de Ronaldo: mais do que um amadurecimento, uma válvula de escape

A reacção do jogador na cerimónia de entrega da Bola de Ouro correu mundo. "A reacção emocional é fruto do empenho que ele põe no trabalho".

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Foto: Ruben Sprich/Reuters

Em Janeiro de 2009, quando Cristiano Ronaldo recebeu pela primeira vez das mãos de Pelé a Bola de Ouro, definiu o momento como “único” na vida, falou mais do que uma vez em felicidade e, mais ou menos descontraído, levantou os polegares no final, em jeito de celebração. Em Janeiro de 2014, quando o maior ícone do futebol brasileiro voltou a entregar-lhe o troféu, o internacional português admitiu ter ficado “sem palavras”. Quase não foram precisas. As lágrimas que lhe correram pelo rosto disseram o suficiente.

O que mudou em Ronaldo num intervalo de cinco anos? O que aconteceu àquela imagem de atleta altivo e intocável, que por vezes mostrava tanta agressividade no discurso como nos pontapés que dirige às balizas adversárias? É de amadurecimento que estamos a falar? Jorge Silvério, especialista em Psicologia do Desporto e antigo provedor dos adeptos na Liga Portuguesa de Futebol Profissional, não vê a questão por esse prisma. “Não acho que tenha havido uma mudança drástica. Há uma imagem pública e uma imagem privada e a ideia de arrogância que se foi criando não corresponde à realidade. Não se trata de arrogância, mas de determinação”, defende, em declarações ao PÚBLICO.

Instantes depois do discurso embargado, na segunda-feira, em Zurique, e de se ter tornado no primeiro português a conquistar por duas vezes o prémio de melhor jogador do mundo, o próprio Cristiano tentou explicar o que lhe passou pela cabeça no momento da consagração. “Foram lágrimas de emoção, lágrimas sinceras. Em primeiro lugar, por ver a minha família, a minha mãe, o meu filho, a minha namorada, as minhas irmãs, o meu irmão, as pessoas que tomam conta de mim. São coisas indescritíveis que ficam guardadas para sempre”, resumiu.

Não é a primeira vez que o jogador mostra o seu lado mais sentimental. Na final do Euro 2004, que Portugal perdeu para a Grécia, em pleno Estádio da Luz, correram mundo as imagens de Cristiano, então com 19 anos, lavado em lágrimas. Mas nessa altura ainda estava longe dos patamares de afirmação mundial que conseguiria anos mais tarde, ainda era o benjamim de uma selecção que apresentava Luís Figo e Rui Costa como figuras de proa.

De então para cá, foi alimentando a imagem de um futebolista dedicado, profissional, autoconfiante, perfeccionista, mas também impulsivo e lacónico sempre que as suas performances eram questionadas ou sempre que se falava na concorrência directa. Na segunda-feira, na hora da vitória, abandonou o registo mais neutro e elogiou os dois candidatos derrotados.

“A reacção emocional é fruto do empenho que ele põe no trabalho. Se atendermos a todo o percurso de vida do Cristiano, desde que chegou à Academia do Sporting, na idade em que chegou [13 anos], até agora, percebemos que foi uma explosão emocional, que é normal e que ele não conseguiu controlar. É a manifestação de um lado mais humano”, continua Jorge Silvério.

Essa faceta, embora num contexto diferente, também já tinha ficado vincada no envolvimento em acções de solidariedade ou em causas que vão muito para lá do futebol. Um exemplo? Em Novembro de 2012, Ronaldo decidiu leiloar a Bota de Ouro que tinha ganho, através da fundação do Real Madrid, acabando por doar 1,5 milhões de euros a alunos e escolas na Faixa de Gaza. Outro? Mais recentemente, realizou o sonho de uma criança que luta contra um cancro, telefonando-lhe de viva voz e convidando-o para assistir a um jogo no camarote do Estádio Santiago Bernabéu.

O sonho de Cristiano, esse – o de voltar a ser eleito como o melhor do planeta –, chegou no decurso de um ano em que o próprio presidente da FIFA assumiu a preferência por Messi e em que o palmarés do Real Madrid ameaçava puxar-lhe o tapete. “Passaram cinco anos. E ele foi sistematicamente candidato à Bola de Ouro, entre os três melhores. Quando voltou a conseguir ganhar o troféu, explodiu emocionalmente. Às vezes, as pessoas não têm noção da pressão, das solicitações, da exigência a que atletas deste nível estão sujeitos”, problematiza Jorge Silvério, acrescentando: “Há uma componente de exposição pública que leva as pessoas a tomarem atitudes com o propósito de resistirem. É normal criarem uma espécie de carapaça em termos públicos”.

Essa carapaça quebrou-se perante milhões de telespectadores espalhados pelos quatro cantos do mundo. “Ronaldo emocionou-se porque gosta muito de futebol e porque trabalha muito para ser o melhor. Foi um prémio para o que está a fazer”, acrescenta Carlo Ancelotti, treinador do português no Real Madrid. Jorge Mendes, amigo e agente do jogador, concentra todas as interpretações numa frase curta: “As imagens dizem tudo”.
 

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