Pezgar. A palavra nem sequer aparece no dicionário, mas José Miguel Figueiredo, de 53 anos, usa-a desde pequeno. Quando era miúdo, com 12 anos, começou a pezgar talhas de vinho com o pai. Desde então, faz disso profissão, embora tenha havido uma altura em que o ofício esteve quase a morrer. “É um processo doloroso, apanha-se muito calor e a juventude não gosta disto”, conta.
Em frente ao lavadouro de Vila Alva, José Miguel aquece uma mistura de “cera de abelha, resina de pinheiro e um pouco de azeite”, que vai servir para impermeabilizar as talhas de barro. “É o pez”, explica. “Isto influencia muito o vinho. Se a mistura não estiver bem feita, o vinho fica com sabor do pez.”
Quando está a ferver, o pez é deitado na talha, que também tem de estar bem quente, “a queimar”. “Se há 40 anos já era maluco por me dedicar a isto, imagine hoje”, ri-se, de luvas na mão. José Miguel é um dos poucos em Portugal que ainda se dedica à arte de impermeabilizar talhas, que tem tido cada vez mais procura por parte dos produtores de vinho e até de restaurantes – a seguir vai pezgar umas talhas em miniatura, para “servir à mesa”, como jarro. “De ano para ano, [a procura] aumenta sempre”, diz. “O problema é não haver sucessores.”
Pela segunda vez, foi convidado do Vinho da Vila, o evento de vinho que aconteceu no sábado, 11 de Maio, em Vila Alva, no concelho de Cuba, no Alentejo, para uma demonstração de como se pezga. A sua ligação à aldeia é antiga. Apesar de morar longe, na Asseiceira, em Tomar, foi ele quem impermeabilizou as antigas talhas da Adega do Mestre Daniel, do produtor XXVI Talhas, o organizador do evento. “É o doutor das nossas talhas”, diz Daniel Parreira, que em 2018 deu outra vida à adega que herdou do avô, o mestre Daniel, e começou a engarrafar vinho.
O Vinho na Vila, agora na segunda edição, também foi uma maneira que Daniel arranjou para ressuscitar Vila Alva, a aldeia alentejana de perto de 400 habitantes que parece ter parado no tempo — até há cassetes de música à venda num mostrador no Café Central. “No São Martinho temos o evento da abertura de talhas e fala-se muito no vinho de talha”, continua Daniel. “Só que no resto do ano, a aldeia acaba por estar morta e quase não se fala de vinho até à vindima do ano seguinte.”
O evento, que no fim-de-semana passado juntou 35 produtores de todo o país e perto de 600 pessoas, acontece propositadamente a seis meses do São Martinho. “Resolvemos organizar em Maio, mas queríamos dar-lhe um conceito diferente”, explica Daniel. “A ideia foi trazer produtores de todo o país, não só de talha, tendo como cenário as adegas típicas de Vila Alva. Já fui a muitas provas e nunca vi nenhuma assim, em que as pessoas andem perdidas no meio da aldeia, a passear de copo na mão.”
De copo na mão pela aldeia
A organização do Vinho na Vila, que também conta a ajuda de Luís Gradíssimo, da empresa Enóphilo, organizadora do Enóphilo Wine Fest, dá, além do copo de prova, um mapa com a localização das adegas na aldeia (Adega do Panoias, Adega João Carraça, Adega do Bezerrão,…) para ir à descoberta. Este ano são 13, mais duas do que no ano anterior. “Esta é a parte que nos dá prazer, houve um senhor que arranjou a adega dele só para isto, este ano são mais duas, que até há três semanas estavam cheias de pó e teias de aranha”, continua Daniel.
Entre os visitantes do evento está um casal da África do Sul, que se mudou de Durban para Lisboa há dois anos. “Estávamos a visitar Évora e vimos no Facebook que isto ia acontecer”, conta Luís Alves, que tem ascendência portuguesa. “Tenho aprendido muito sobre as castas tradicionais de Portugal e a especificidade e autenticidade de cada região. E estou ansioso pelo jantar de hoje à noite. O problema vai ser conduzir de volta.”
Um dos momentos altos do evento é o jantar ao ar livre na praça principal da aldeia, com comida típica alentejana e vinhos XXVI Talhas. Na véspera, aconteceu também o jantar “Chefs na Vila”, exclusivo para 40 pessoas, com os chefs João Narigueta (Poda, Híbrido) e Filipe Ramalho (Páteo Real) a preparar petiscos para harmonizar com vinhos XXVI Talhas, Mainova e Joaquim Arnaud.
“É arrojado fazer um evento destes nesta altura do ano”, comenta Nuno Duarte, das Produções Anónimas, um dos produtores presentes no evento, que também faz vinho de talha na Amareleja, o Maquete. “É uma maneira de preservar a história e dar valor às adegas alentejanas tradicionais, respeitando o local onde se fazia o vinho.”
João Arvanas, da Legado de Talhas, dá a conhecer o seu vinho, o Monte Capas, na Adega do Palrão, onde a família faz vinho de talha há 85 anos, desde os tempos do trisavô, Francisco Inácio dos Santos. A produção sempre foi “local”, “para consumo próprio, para os trabalhadores, amigos e conhecidos”, até ao ano passado, quando começaram a engarrafar. “Surgiu esta marca, Monte Capas, que é o nome da primeira vinha que a minha família teve. É um tributo à família.”
Na mesma adega, e com poucas horas de sono, Micael Batista, de 26 anos, da Quinta da Ramalhosa, conta a história dos vinhos que nada têm a ver com talha, um negócio a que se dedica desde os 18 anos na região do Dão.
Mimar os produtores
Para Daniel Parreira, organizador do evento, “é importante mimar os produtores, alguns a fazerem muitos quilómetros para estar aqui”, afirma. É por isso que este não é “um evento de encher o copo”. “Queremos um evento para quem aprecie vinho.”
O preço (20 euros para a prova de vinhos com petiscos) ajuda a “filtrar” os visitantes. “Há muitas festas iguais, com uma tenda e os mesmos produtores, só muda o artista que lá vai. Nada contra, mas nós não queremos tapar a aldeia”, continua Daniel. “Vila Alva está muito parada e o maior tesouro que cá está é esta tradição de vinho de talha e queremos mostrá-la.”
Durante o resto do ano, a Adega do Mestre Daniel continua a funcionar com provas que também passam pelas outras adegas da aldeia. Luís Garcia, cunhado de Daniel, trabalhava como taxista em Lisboa até se mudar para Vila Alva apenas para se dedicar ao projecto de enoturismo da XXVI Talhas, que está em crescimento e quer ajudar as outras adegas, sem concorrência. “Não há ninguém [que aqui venha e] que não levemos às outras adegas para ter a experiência. Temos aqui este tesouro e estivemos muito tempo sem valorizá-lo.”