Passei os últimos dias a observar o meu pai. Faz uma pausa quando diz a idade: “Oitenta e …” e nós completamos - serão 88, não tarda. O meu pai tem a malandrice sábia de várias gerações nele. Sobreviveu à miséria de um Douro rico em matérias-primas, pobre em igualdade. Depois disso, veio a consciência de estar a trabalhar para gente que se impunha hierarquicamente, num estado que pouco tinha de novo: velhos hábitos, bafientas ideias e costumes.
O meu pai, concluo agora, retirou de cada etapa o melhor que conseguiu. Foi, depois, austero no exercício da paternidade e um marido muito aquém do que devia. Vejo-o, no entanto, submerso em saudade e isso emociona-me. Acredito que a minha mãe ficaria contente por nos ver em paz com ele, rindo do que ele conta com piada, aceitando ainda o seu saber que agora já não impõe. Insiste muitas vezes em dizer: “vocês fazem como entenderem”. Isto é uma espécie de sorriso do meu pai que não está à vista. É uma coisa pacificada de alguém que viveu o tempo todo em ebulição. Uma água que está morna, mas nem por isso perdeu a vitalidade. É a sabedoria. Uma parte de mim lamenta que, por vezes, essa sabedoria, chegue tarde ou em momentos em que a vida já não oferece muitas saídas.
O meu pai acorda e percebe que está vivo. Abraça o dia vagarosamente. Às vezes fica a debater-se com a memória. Chama a minha mãe e ela já não está lá. Mas o nome dela pulveriza o jardim, o quintal, os cantos que ainda têm o cheiro dela. Depois, perante a constatação da sua ausência, conforma-se. Olha para o céu. Vê os melros a debicarem o fruto proibido. Ri-se com o saber do campo e dos animais. Conclui que já viveu muito.
Voltámos a pegar no livro que vi com a minha mãe quase na sua despedida. Sabem, é curioso como, de cada vez que ele entra na casa que agora também digo ser minha, aponta para a parede e atira: “eu gosto é disto”. São as gravuras que faziam parte desse livro que vi com a minha mãe e onde dissemos em voz alta o nome das flores. Volto a contar ao meu pai que fiz esse exercício com a minha mãe e, que, também por isso, as gravuras das flores estão ali na parede para a recordar. Ele olha, indiferente ao que eu digo, e sorri. Como se adivinhasse o que a memória não retém.
Quando a memória falha tudo pode ser novo outra vez. Até para quem está li a contar tudo incansavelmente. Na repetição da minha voz encontro novas palavras. Não é mau. Estou agora muito atenta à forma como os adultos tratam os idosos. Quase todos se esquecem de que, um dia, estarão naquele lugar de dependência. Temos uma espécie de desprezo inconsciente pelo fim da vida dos outros, porque ainda nos achamos invencíveis ou talvez porque, no nosso íntimo, rejeitemos esse fim que nos espera. A inevitabilidade veste-se de desdém antes de chegar.
Agora apetece-me seguir o meu pai, observando-o na forma quase sagrada como alcança, com o olhar, o voo dos pássaros, os passos furtivos dos gatos, a forma como tudo floresce no quintal, desafiando todos os fins, porque quase tudo volta a nascer. A natureza acena-nos triunfante e silenciosa, mostrando que continuará aqui depois de nós, cumprindo ciclos.
O meu pai, ali em frente às gravuras, diz: “tenho uma vida de lorde”. E ri-se sozinho, enquanto eu confirmo. Confirmo, lembrando-me do rapaz que não pude conhecer, que já era António, antes de ser meu pai, que não tinha sapatos para ir para a escola, que viria a trabalhar depois a vida toda num banco e que era a alegria da carruagem do comboio onde tanta gente o esperava para ouvir as suas histórias. O António que era de jantar às sete, com as luzes acesas de Inverno ou a luz natural de Verão. Esse António, agora sem horários, contempla a natureza e retém o que nem eu consigo imaginar, mas tem com ele um sorriso pacificado que me deixa também mais em paz.
Isto não anda muito longe do que todos podemos desejar.
O coração ainda bate.