O Coração Ainda Bate. O rapaz da bicicleta
Inês Meneses e a contagem oficial da idade adulta.
Reabrindo o meu Livro de Reclamações das Saudades, onde volto para perguntar aos outros sobre aquilo de que sentem falta, deparo-me muitas vezes com as mesmas respostas: mãe, pai, avós, a casa onde já pertencemos, um Bacalhau à Brás, batatas fritas às rodelas que foram partidas grosseiramente por mão amada, as férias longas num Verão interminável. Volto a esse Verão por nele caber a infância toda. Queremos agora que esses três meses condensem a nossa alegria que se foi diluindo na idade adulta. Esquecemos por isso o Inverno, onde a escola nem sempre esteve aquecida e onde muitas vezes os outros nos esqueceram. Sim, eu própria quero agora que a minha infância seja o Verão interminável. Talvez pelo facto de o sol se ter precipitado nesta Primavera, volto a esse Verão em que já não era uma criança. Estava prestes a deixar de o ser (talvez dentro de mim nunca tenha sido uma criança, mas deixava-me levar pelo calendário rigoroso, em que não houve festas de anos, mas todos os soubemos contar).
Tinha 16 anos e fui à descoberta da rádio como quem brinca no recreio. Era Verão e talvez seja mais fácil que tudo comece no tempo em que as noites não acabam cedo. Entre as minhas idas e vindas para esse ofício, que ainda não parecia um trabalho, fui sinalizada por alguém a quem não prestei demasiada atenção, por ser alvo do desejo de uma outra amiga. Não éramos crianças. Éramos miúdas. É curto esse tempo, embora os adultos teimem em chamar-nos miúdas quando gostam de nós. Miúdas são crianças em transição. São quase adultas a quem ainda não imputamos responsabilidades. É agora, no presente, que consigo dizer que fui uma miúda. Na altura em que vivi esse período tão livre, não sabia ainda a minha idade. Dentro de mim, esse algarismo que nos situa continua turvo. Talvez a idade seja uma falácia apenas desmentida pelo corpo.
O rapaz, que já era um homem e que eu tinha visto aqui e ali, apareceu-me um dia de bicicleta vindo da praia. Perguntou se me podia acompanhar, coisa que achei verdadeiramente estranha (já viram que hoje em dia, tanta gente anda de bicicleta, mas ninguém se propõe a acompanhar-nos? Essa sedução morreu na ciclovia…). À pergunta dele devo ter dito que sim. Como a idade, também esse momento ficou turvo. Só o vejo a aparecer diante de mim em contramão, percebendo, mais tarde, que me ia rente ao coração. O que se seguiu deixa de ser o Verão interminável, para passar a ser uma espécie de contagem oficial da idade adulta: um primeiro amor que não morreu na praia e que atravessou perigosamente o Inverno, mas são assim os primeiros amores do tempo em que ainda não precisavam de tatuagens para os fixarmos: ficam em nós para nos lembrarmos de quem éramos e o que somos. O amor é uma linha cronológica que pode ser mais instável do que um monitor cardíaco: olhamos para trás e vemos, em cada fatia de tempo, um amor, uma paixão breve, um desgosto ou um devaneio platónico que nos deixou a falar sozinhos e ainda assim felizes. Deixa de ser relevante como terminou ou se continuou, porque somos o conjunto dessas tentativas todas.
O Verão interminável acabou no dia em que o rapaz perguntou se me podia acompanhar e eu, mesmo achando estranho, aceitei. Tornei-me oficialmente uma miúda a caminho de ser mulher. Já não poderia mais ser a criança frágil que achava que não tinha corpo, só pensamento. Às vezes ainda me esqueço do corpo e só levo comigo o pensamento.
Não tenho saudades desse Verão que não foi interminável, apenas do momento em que uma bicicleta galgou o passeio para se atravessar por mim.
O coração ainda bate.