O Coração Ainda Bate. O lugar da cumplicidade
Inês Meneses fala sobre a cozinha, um sítio que nunca esteve reservado às mulheres.
Da minha cozinha avisto a Liberdade. Tenho uma serigrafia emoldurada que diz: “a liberdade é a coisa mais cara da vida”. Uma apropriação da dupla de artistas Sara&André à conhecida citação de Almada Negreiros, “a alegria é a coisa mais séria da vida”.
A cozinha devia ser um lugar de alegria e liberdade: um ponto de encontro de mulheres e homens. Não, não é só o lugar onde os homens vão abrir as garrafas. É, preferencialmente, um espaço onde se trocam conversas e mãos se unem também para tarefas várias.
Tenho muito orgulho nos meus amigos que cozinham bem e gosto de ouvir uma mulher dizer que não tem apetência nenhuma para cozinhar. Sabem porquê? Porque pode. Porque nenhum manual divino ordenou que as mulheres estivessem confinadas à cozinha ou que tivessem de vir equipadas com essa valência. Exactamente da mesma forma que nenhum manual impediu, originalmente, nenhum homem de cozinhar. E eles, às vezes, cozinham tão bem que nessas alturas apetece dizer - “sim, Chef”, como ouvimos repetidamente na extraordinária série "The Bear" (na Apple TV).
Os meus amigos que cozinham, Eduardo, Paulo, João, são homens de uma generosidade imensa. Recebem-nos com a música em fundo e o sorriso de frente para nós, enquanto cozinham sem segredos. Os amigos chegam e eles continuam a mexer o arroz (a que se juntará depois, por exemplo, um robalo) e conversam animadamente sobre as saudades que de mim tinham. E eu deles. Ou podem estar a marinar um peixe em lima, coentros e malagueta, enquanto contam uma graça, sabendo que contarão para sempre connosco. São assim os amigos que cozinham. As mulheres podem lá estar ou não. São parceiras dessa cumplicidade que nasce ali, na cozinha. Acabo de encontrar a palavra certa para esse lugar da cozinha: cumplicidade. Porque no quarto é óbvio que temos de ser cúmplices, mas na cozinha só os verdadeiros cúmplices se ligam. E ligam como uma boa massa que não deslaça.
Vi, durante décadas, a minha mãe a cozinhar incessantemente (e que saudades tenho do talento e amor dela em tudo o que fazia). O meu pai só entrava na cozinha para se sentar à mesa. A horas certas, de preferência. O meu pai hoje, já sem a minha mãe, levanta os pratos da mesa, mas nessa altura não, nunca. Ao meu pai desculpo essa incapacidade que já não veio a tempo de ser trabalhada.
Hoje tenho muita pena de não ter aprendido mais com a minha mãe, mas ela soltou-me para ser livre e emancipada. O meu irmão, que tal como eu, viveu a sorrir com os cozinhados da nossa mãe, é hoje um homem que está preparado para o presente (esqueçam o futuro: nós precisamos é de gente a viver no presente). O meu irmão põe a mesa, levanta a mesa, arruma a louça, prepara as entradas e pode perfeitamente desenrascar um prato. O filho dele será um de nós: sabe que a cozinha é um lugar onde homens e mulheres convivem e cozinham juntos. São estas pessoas que me fazem ter ainda esperança neste mundo que está à espera de uma faísca para rebentar. Andamos todos a alimentar a tensão quando podíamos só alimentar o estômago de quem precisa.
Volto à cozinha onde esta crónica começou: está aqui o L de Liberdade. É precioso que na cozinha nos encontremos em posições iguais ou, se desiguais, que sejam faladas e consentidas. Na cozinha buscamos alimento, sim, mas também pensamos a vida. Na cozinha faz-se uma radiografia nítida do que se passa em sociedade.
Na minha cozinha há um L de Liberdade. Em muitas será uma miragem, mas a minha mãe não me soltou para ser uma mulher resignada.
O coração ainda bate.