O Coração Ainda Bate. A prateleira da vergonha
Inês Meneses diz que devemos rir sobre os amores passados e dá-lhes um lugar.
Há dias, numa conversa entre amigas, falava sobre amores que nunca o foram (equívocos habituais ao longo da vida) e usei a expressão: a prateleira da vergonha. Disse e ri-me, que é o que devemos fazer perante o passado, sobretudo quando não ficámos bem na fotografia. Ninguém ficou, na verdade. Não reclamemos só para nós essa vergonha do outro, já que também moramos na prateleira alheia. Mas, afinal, o que é isto da prateleira da vergonha? Um lugar na memória para onde remetemos e arrumamos as pessoas que se cruzaram connosco, por quem nos julgámos apaixonados e, imaginem, até sofremos em determinado momento. A cura para estes males de crescimento (pode acontecer aos 30 ou aos 60) é mesmo perceber que, doendo agora, vai doer menos depois. Até desaparecer. E desaparece de tal forma que, um dia, como aconteceu comigo (dando origem a esta crónica), eu já posso lembrar-me de determinada pessoa e sobre isso ter a possibilidade de rir, dizendo: “está na prateleira da vergonha”.
Ora, a prateleira da vergonha é bastante democrática e acessível. Quem aponta o dedo esquece-se facilmente de que poderá também morar numa estante. Estou certa de que faço parte de algumas, mas, como inventei a expressão, arrogo-me no direito da total exclusividade deste lugar.
Estão a ver o Hospital das Bonecas em Lisboa? Um sítio mágico e doloroso em igual proporção? Memórias de felicidade que vieram de tantas casas, mãos pequeninas que se agigantaram nas brincadeiras com aqueles presentes escolhidos com amor. Um dia algo deixou de encaixar. Não se partiram corações, mas braços, cabeças que se deslocaram, cabelos levados pela fértil imaginação infantil. Bonecas e bonecos foram morar para o Hospital, na Praça da Figueira, fundado no século 19. Alguns desses bonecos, arrumados em secções específicas, não têm conserto.
Estão ali tristemente em exibição e dificilmente alguém os vai levar. A analogia a que recorri é puramente estética: os bonecos organizados como se fossem amores incompletos, estraçalhados. Imaginei a prateleira da vergonha preenchida pelos nossos casos que, não tendo conserto, estão longe de ser um drama. É apenas um flashback de parte da nossa vida, a que não encontrou sempre as respostas certas, mas que, muitas vezes, desaguou até em soluções muito benéficas para nós: perceber que andámos durante algum tempo com a pessoa errada e descobrir que precisávamos somente de estar sozinhos está longe de ser um drama. É o tal crescimento que se faz com dores avulsas. mas que têm solução (e até costuma estar dentro de nós).
Hoje queria que esta crónica fosse divertida, como o momento em que me surgiu a expressão da prateleira da vergonha. Lembrarmo-nos de alguém que foi claramente um erro de casting e sobre isso rirmo-nos como se ainda fossemos crianças. Como devem saber, e se isto vos aconteceu é bom sinal, perguntamo-nos muitas vezes: “Como foi possível? Como é que eu gostei desta pessoa?” E depois tapamos a cara ou gargalhamos com o apoio dos amigos que nos confirmam que aquele rapaz ou rapariga representou “um período negro” da nossa vida.
Temos que rir destes episódios, até quando dissemos que nunca mais íamos recuperar daquilo ou que nunca mais conseguiríamos gostar de alguém. Reparem como a vida, quando corre bem, nos ensina tantas coisas (não será a vida, mas nós, na forma como a cruzamos): recuperamos daquele amor, que nem o era, apaixonamo-nos loucamente depois por outra pessoa e, um dia mais tarde, ainda nos conseguimos rir disto tudo, começando a tentar encaixar nomes na prateleira da vergonha. Ainda são alguns, não são? Pessoas que nada tinham a ver connosco e em que, ainda assim, teimámos, enquanto os nossos amigos só aguardavam o nosso telefonema a desabar.
A prateleira da vergonha é um ajuste de contas feliz com a vida. Uma comédia romântica ao contrário. Só ficou a comédia na verdade. Pensarmos em todas as pessoas em que não nos reconhecemos hoje em dia, mas que achámos, em determinada altura, que eram um amor, uma paixão. Foi só um equívoco. Não vem mal ao mundo por causa disso. Na prateleira da vergonha moramos todos. É preciso rir para que o amor possa ser sempre melhor e nos tornemos mais exigentes com ele. Connosco.
O coração ainda bate.