A neve ainda vai dando ares de sua graça aqui no Nordeste dos Estados Unidos, mas o calendário já entrou na mud season, a estação da lama, dos bolbos nos arbustos e das aves de regresso do Sul. Descongela também uma polémica interessante (para quem a vê de fora) que entretém o estado do Vermont: quais são as tribos nativas deste cantinho americano? E quem as define como tal?

A América já tinha gente milénios antes de ser "descoberta" pelos europeus. A ponta Nordeste dos Estados Unidos e também parte do Sudeste francófono do Canadá eram a terra dos Abenakis, um dos povos da confederação Wabanaki. A colonização, a guerra e o roubo das terras empurrou-os ao longo dos séculos para a assimilação ou para fora das suas florestas, lagos e rios ancestrais – muitos dos seus descendentes estão hoje no Canadá e não nos EUA.

Ao longo das últimas décadas, porém, têm sido dados passos para reconhecer a história e reabilitar a cultura de povos nativos como os Abenakis nos Estados Unidos. O Vermont não constituiu reservas nativas como se fez no passado no Oeste americano, com extensos territórios semi-autónomos estabelecidos pelo Governo federal e geridos pelas tribos, mas reconheceu oficialmente, na década passada, quatro tribos Abenakis. Mais do que uma proclamação pomposa, esse reconhecimento traz consigo uma série de benefícios concretos para os membros das tribos, como isenções de impostos, licenças gratuitas de caça e pesca, financiamento público para projectos culturais e educativos, e autorização exclusiva para produzir e vender arte nativa. 

O reconhecimento foi celebrado pelos poucos milhares de habitantes do Vermont que se identificam como nativos americanos, mas é fortemente criticado, ainda hoje, por membros de tribos Abenakis noutros estados do Nordeste e no Quebeque, no Canadá.

A chave da polémica está precisamente no facto de, no Vermont, se ter reconhecido quem simplesmente se identifica como Abenaki. Ao contrário do que se fez noutros estados norte-americanos, não foram requeridas provas genealógicas ou registos históricos que comprovassem que os membros dos quatro grupos oficialmente reconhecidos pelo estado eram, realmente, descendentes dos Abenakis. Em vez disso, fez-se fé em narrativas antigas sobre grupos Abenakis que terão alegadamente vivido escondidos no Vermont durante cerca de 200 anos, em fuga à assimilação forçada.

Desde a decisão histórica do Vermont, duas tribos Abenakis do Quebeque, os Odanak e os Wôlinak, têm feito lóbi junto do estado norte-americano e de diversas instituições públicas para reabrir o processo de reconhecimento dos quatro grupos, acusando-os de usurparem a sua identidade e cultura. E sustentam-se em estudos académicos que têm questionado a identidade Abenaki das tribos reconhecidas pelo Vermont, e que sugerem outra origem: poderão ser descendentes de colonos francófonos do Canadá que migraram para Sul ao longo dos últimos séculos, com algum grau de miscigenação com povos nativos (é essa a história dos métis canadianos), mas não verdadeiros Abenakis.

O ruído em torno desta polémica tem aumentado. Mas, para já, não parece haver abertura para reabrir o processo de reconhecimento das quatro tribos do Vermont. Fazê-lo seria potencialmente tão controverso como a tomada de decisão original.

À Vermont Public Radio, o deputado estadual Tom Stevens, que participou no processo de reconhecimento das tribos, defende a filosofia da metodologia original: "O que era importante para nós é que não ia ser o Governo a dizer quem é que era nativo temos mais de 400 anos de história a dizer às pessoas o que é que elas são, especialmente aos povos nativos. (...) Não concordo que seja necessário analisar árvores genealógicas ou o sangue para determinar quem é nativo neste estado. Não nos cabe a nós. É uma forma supremacista e racista de lidar com isso. (...) Os indivíduos e cada tribo são livres de tomar essas decisões".

É um imbróglio tipicamente americano. A tradição republicana  no sentido da tradição republicana francesa ou portuguesa; não no sentido americano, partidário, do termo é a de fugir à classificação étnica, racial e cultural dos seus cidadãos. Nos EUA, porém, essa classificação é feita pelas autoridades e é mesmo reivindicada por grupos e indivíduos. A questão nunca é inocente está sempre subjacente uma disputa por poderes, direitos e recursos. Numa era de múltiplas identidades, algumas delas muito recentes, outras até concorrentes, e em que sangue, tradições antigas e mitologias recentes se misturam, como no caso dos Abenakis, quem é que decide o que somos e como nos vemos?