O Coração Ainda Bate. Um dia, eu também

Quase todas nós fomos vítimas de abuso. “Um dia, eu também” - lembra Inês Meneses.

Tenho muitas dúvidas de que alguma vez o #metoo português se faça ouvir. Teríamos de denunciar a hierarquia misógina que se abate sobre as mulheres. O abuso normalizado. O insulto silenciado. A violência que em praça pública ainda se vira contra a vítima. Para haver um #metoo português era necessário que os homens confessassem o que consideram ser normal: patrões que acharam que as suas colaboradoras (como agora se diz, de forma a branquear o fosso laboral) estavam dispostas a tudo, porque eram eles que mandavam, artistas que acharam perfeitamente legítimo atrair as suas fãs, porque elas gostariam de tudo o que viesse deles, familiares que, achando que por ser em casa, - naquela casa - ninguém se haveria de queixar. Não, nesta matéria, Portugal não mudou assim tanto. Por isso, de cada vez que alguém ergue a voz para dizer “eu também” parece haver um tornado ainda com menores consequências do que o último na Ponte Vasco da Gama.

As mulheres estão a tentar fazer-se ouvir, mas os homens ainda têm forma de falar mais alto, mais grave, de forma mais ruidosa. O dinheiro ainda é, principalmente, do género masculino.

Os homens abafam as mulheres quando elas estão a tentar esbracejar. Alguns não percebem sequer que o fazem. Outros fazem-no com prazer. O prazer de esmagar uma vida que vinha acompanhada de beleza e sedução. Também era preciso explicar a alguns homens que a sedução está longe de ser um convite. É um instante que maior parte das vezes acaba ali mesmo e perdura na nossa memória por ter sido apenas isso.

Se fizéssemos uma sondagem anónima em Portugal para saber realmente quantas mulheres sofreram abusos ao longo da sua vida teríamos uma amostra surpreendente, mas para isso era preciso explicar a todas as mulheres o que é isso do abuso. Porque muitas não conheceram outra realidade – e isso vai do decote proibido à mão que nunca se pediu na nossa perna. Nunca. Em tempo algum.

Há muitos anos foram-me oferecidos bilhetes para um jogo. Na véspera, a secretária do homem que os tinha oferecido ligou-me a dizer que os bilhetes estavam reservados em meu nome, mas teria de os levantar no hotel onde esse homem estava hospedado e me esperava. Lembro-me de ter ficado atónita e quase sem capacidade de reação. Não era nada ainda. Não seria nada felizmente. Tive o discernimento de dizer a essa mulher (ela era bem mais velha do que eu e sabia o que estava a fazer) que não levantaria os bilhetes a não ser no recinto onde o jogo se realizaria. Silêncio do outro lado. Silêncio do meu lado. “Assim será” - disse ela. E assim foi. Eu tinha 25 anos. O que teria acontecido se tivesse ido levantar esses bilhetes no hotel? Teria consentido no que me era proposto por achar que era normal? Nas escolas ensinam os miúdos que normal é o consentimento resultar de um “sim” vezes dois?

São cada vez mais as vozes que se levantam, mas ainda estão a demorar a chegar às cúpulas. Caem num poço sem fundo muitas das denúncias que ouvimos. Como se nada fosse. Como se aquele convite para jantar, que ambos aceitam, quisesse obrigatoriamente dizer que os dois estão dispostos a ter algo mais do que uma conversa e uma noite de cumplicidade.

Os homens acham que as mulheres se calam para sempre: por vergonha, por medo, por perceber que a justiça nunca os condenará. Todas podíamos dizer na primeira pessoa: - um dia, eu também. Todas podíamos completar essa história, mas quase todas ficamos em silêncio. Um pouco como na violência obstétrica em que, perante o fruto do nosso ventre, nos obrigamos a esquecer aquilo por que passámos. Não, um dia falaremos com menos medo, sem tanta vergonha e a justiça estará mais do lado de quem é vítima e não de quem tem poder económico.

Talvez não seja bem assim. Talvez as mudanças sejam lentas como o levantar da voz das mulheres.

Um dia, eu já tinha mais de 40 anos, e um rapaz ofereceu-me uma bebida que tinha algo mais do que gin lá dentro. A história não teve um fim triste porque eu estava protegida, mas as mulheres, não parecendo, não podem estar senão em alerta. Sempre em alerta.

Já nos aconteceram tantas histórias, que esta crónica podia ter um espaço em branco para cada uma que me lê.

Um dia, eu também.

O coração ainda bate.

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