Eis que fazem novas todas as coisas

Foi naquela encruzilhada, numa estrada municipal que liga as aldeias dos Troviscais ao Mosteiro, que se desenhou o destino destes homens. Foram os primeiros feridos de Pedrógão Grande. Esta é a história do seu renascimento.

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Foi naquela encruzilhada, numa estrada municipal que liga as aldeias dos Troviscais ao Mosteiro, que se desenhou o destino destes homens. Foram os primeiros feridos de Pedrógão Grande. Zeca ia na carrinha com Vítor e Carlos quando o fumo e o calor os fizeram embater numa barreira. Zeca e Carlos, cunhados, correram numa direcção, Vítor correu na oposta. Não sem antes encalhar num cabo de aço que lhe amputou os dedos das mãos. Foi a fuga de Vítor para o lado contrário que os salvou naquela tarde-noite. O sogro de Zeca, Manuel, passava na estrada com o adjunto dos bombeiros da vila e encontraram-no caído na estrada. Foi ele que, combalido, conseguiu avisar que não estava sozinho e que Zeca e Carlos estariam por ali. Foi um milagre terem sido encontrados, dizem. Foi um milagre, sim. Tal como é um milagre a recuperação que têm tido desde aquele dia 17 de Junho às sete da tarde.

Há um ano em recuperação, ainda nem todos estão em casa. Zeca chegou à família em Fevereiro, Vítor ainda permanece internado no Hospital Rovisco Pais, na Tocha. O PÚBLICO esteve com os dois nos últimos cinco meses e testemunhou como se reconstroem duas vidas ao passo da regeneração da pele.

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Vítor Neves está à espera da operação para as próteses nas mãos

O Vítor quer pintar e ter o mundo nas mãos

Está há um ano a recuperar das feridas. Vai a caminho da nona operação para colocar próteses nas mãos, para recuperar os dedos que perdeu naquela noite. E é com elas que quer agarrar o futuro: pintar e expor em feiras.

Acordou e ficou a olhar para o tecto a pensar no que lhe tinha acontecido. Esteve quase cinco meses apagado. Em Novembro do ano passado abriu os olhos. “Tive um acidente”, lembrou-se. Ao seu lado já tinha a equipa de médicos que o arrancaram do coma em que o tinham induzido nos dias a seguir ao incêndio. “Sabe o que lhe aconteceu?”, perguntou-lhe o homem de bata branca. Sabia de tudo. “Contei tudo o que andei a fazer de manhã, tudo, tudo, tudo até à hora do acidente. O médico virou-se para os colegas, - estavam lá uns cinco ou seis - e disse: ‘Pronto, temos homem’”.

Temos.

Chama-se Vítor Neves e foi um dos feridos graves de Pedrógão Grande. Sorri sempre de olhos brilhantes e esperançados. A figura franzina que hoje é desmente os que acham que a força está na musculatura. “Vocês têm de ter vontade de recuperar senão não recuperam”, diz aos colegas no Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro, no antigo Hospital Rovisco Pais, na Tocha, enquanto pedala na bicicleta, sempre com mais força e mais tempo do que seria de esperar. A perda dos músculos, resultado de quase cinco meses numa cama de hospital, foi apenas mais uma das maleitas a associar às complicações que o fumo e as chamas lhe levaram ao corpo, por fora e por dentro.

A miopatia do doente crítico, designação dada à fraqueza dos músculos resultado de um internamento prolongado, afectou todos os órgãos de Vítor, incluindo o vital: o coração. “Esta semana estava a 35”, conta. No dia seguinte, o enfermeiro Marco faria nova medição da pulsação e o susto tinha aparentemente passado. Aparentemente, porque os soluços a bombear o sangue volta e meia são mais lentos.

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Vítor, 51 anos, fotografado no hospital Rovisco Pais, na Tocha, onde ainda está internado Adriano Miranda

“Quanto tens isso o que é que te dá, apagas-te?”, pergunta-lhe Patrícia, a mulher de Zeca, com quem vai estando com frequência em lanches de fim de semana. Fica sem sentidos, mas agora já domina a arte de avisar antes de quase desmaiar.

Desde o Natal que consegue ir a Pedrógão Grande de visita todas as semanas, transportado por uma ambulância dos bombeiros. A filha, Magda, sabe de cor aquele caminho pelo IC8 fora. “Ela passou dias e dias sentada num banquinho a olhar para mim. Eu estava isolado. Ela passava os dias inteirinhos a olhar para mim”, conta. A filha, que todos os dias durante meses se pôs a caminho de Coimbra, deu-lhe uma alegria por estes meses, está grávida do segundo filho e Vítor já sabe o trabalho que tem pela frente: “Tratar dos netinhos”.

São eles que lhe dão força para recuperar: “Uma pessoa agora não pode perder a esperança. Por lhe ter acontecido isto uma pessoa não pode parar”. É, no entanto, esta ideia que preocupa quem dele gosta: Vítor tem força e vontade, mas o coração dá de si.

A fraqueza física do principal órgão do corpo contrasta com a sua dimensão. Cada câmara carrega uma tenacidade que lhe dá força – e até demais - na recuperação intensiva que está a fazer. A rotina no Rovisco Pais, antiga leprosaria recuperada para hospital de reabilitação, é exigente, mas faz parte da terapia deste centro que criou condições especiais no ano passado para acolher cinco dos feridos dos incêndios e que vai agora lançar obras de expansão. Além de Vítor, ainda lá estão internados mais dois feridos graves dos fogos que aconteceram em 15 de Outubro.

Veja aqui o documentário "Eis que fazem novas todas as coisas"

Todos os dias, acorda pelas 6h30. Fica na cama à espera a despertar para um dia que, sabe, vai ser exigente. O enfermeiro vai correndo os quartos à vez, chega perto de Vítor para o ajudar nas tarefas matinais que começam pelas 7h. Vítor levanta-se sozinho, veste-se. Passa com o braço por cima da cabeça para, com o capuz, prender o casaco e ficar com os braços mais descansados para, sem pegar na roupa, poder vestir-se. Falta ainda tomar banho porque não consegue segurar no chuveiro. O alumínio quente tolda-lhe a pele sensível, apesar de a água sair tépida. Limpar-se também ainda não consegue. “Tem de ser devagarinho. Já consigo lavar os dentes. Já me visto sozinho, só não consigo calçar os sapatos e atá-los e as meias, mas devagarinho consegue-se”, diz.

Pouco depois sobe as escadas para tomar o pequeno almoço. E subir as escadas, pé ante pé, é uma conquista que a sua persistência alcançou mais cedo do que esperavam os médicos. Depois de quase cinco meses em coma, chegou ao Natal em cadeira de rodas. Em Abril, já andava pelo próprio pé, mesmo a tempo de festejar o 51º aniversário com autonomia.

É o que vai fazer a manhã inteira: aguentar-se em cima das duas pernas que ainda há meses tinham sido operadas, recebendo enxertos de pele para se poderem esticar. Mas este homem tem uma vontade que ultrapassa as regras. O caminho para o ginásio do centro de reabilitação é feito de carrinha interna de transportes e Vítor… vai de pé. Sai devagar, sempre com uma bolsa a tiracolo onde guarda o telemóvel. Anda na passadeira, anda de bicicleta, faz exercícios e a seguir faz fisioterapia. “Como estava e como está!”, diz-lhe uma empregada do centro. Sorri. Ainda há quatro meses ali entrou sem andar, sem esticar o braço, sem comer sozinho, sem se vestir sozinho. Agora raramente pede ajuda. Os fechos éclair são os mais difíceis, mas também eles sucumbem à persistência e deslizam para onde devem.

“Agora força para baixo”, diz-lhe a fisioterapeuta. Aperta as molas amarelas, já consegue colocá-las no arame. As vermelhas são de maior resistência, mas não desiste apesar de ter, como os dedos foram amputados, as pontas mais sensíveis. Aleija-se com facilidade. Ainda na semana anterior, tinha caído e magoado a mão. Estava a tomar duche e desequilibrou-se. Mais um revés. Mais uma ida aos hospitais de Coimbra, onde tem sido cliente assíduo. Ainda lá voltaria em Maio, para uma consulta ao coração e depois em Junho para uma operação marcada para preparar as próteses de uma mão.

Apesar de lhe faltarem os dedos, já agarra num lápis para escrever e num pincel, para pintar. “Ainda não disse à minha filha, mas estou a pensar dedicar-me à pintura. Quero pintar muitas coisas… paisagens, fazer exposições nas feiras”, conta entusiasmado. Tinha feito umas experiências no fim de semana quando foi a casa ter com a filha e agora não pensa noutra coisa. Pede para desenhar um pássaro, que leva um mundo cortado ao meio nas mãos. “Isto é um bocado o Vítor, quer voar e ter o mundo nas mãos?”, pergunta-lhe a terapeuta ocupacional. “Vamos lá ver”, diz Vítor. Já vimos. Tem o mundo todo em si.

“Eu disse que o meu pai ia voltar porque tem o meu sangue”

A recuperação de Zeca chama-se Leonor e tem oito anos. Foi por ela que voltou depois de meses entre hospitais.

Pedra, papel ou tesoura? Ela ganha quase sempre. “O Popeye nasceu na China, em cima de uma piscina. Comia espinafres, bebia leitinho, o Popeye nasceu na China”, vai cantando enquanto roda a mão do pai. A pequena Leonor inventou uma nova forma de curar feridas, fisioterapia com amor. Desde o início do ano que naquela casa no centro de Pedrógão Grande passou a haver uma dupla que não se larga. Leonor nunca desistiu de recuperar o pai e a nova vida dele é toda desenhada por e para ela.

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José Carlos, ou Zeca, como é conhecido, e a filha. Leonor, de oito anos, ajuda o pai a vestir as cotoveleiras, que lhe ofereceu no aniversário para proteger os braços feridos de Zeca

“A primeira vez que o vi falei e disse ‘olá’ e mais nada, comecei a chorar. Na segunda vez que lá fui não olhei, preferi não olhar. O meu pai não era aquele”. Foi o que pensou sem lhe dizer. Separava-os um vidro. Ele em coma, queimado dos pés à cabeça, ela a tentar dar força à mãe Patrícia, que lhe contou sempre tudo, mesmo o pior que imaginava. Leonor tinha de estar preparada para o pior. “O pai não vai voltar a estar connosco”, acreditava. A filha, não. “Dizia-lhe que o pai ia voltar. Cheguei a dizer à minha mãe que sabia que o meu pai ia ficar bom porque eu tinha o sangue dele”. Soube sempre e acreditou pelos três.

“A minha filha reagiu muito forte. Ver o pai numa cama de hospital... Podia falecer, podia estar vivo como está. Nunca desistiu e se calhar também nunca me deixou desistir”. É isso em que Zeca, ou José Carlos Santos, acredita para estar vivo e a lutar. Durante meses foi submetido a sete intervenções cirúrgicas: cinco para excertos de pele e duas ao olho e ao dedo. Já tem de ir novamente ao bloco por causa do outro olho, que volta e meia mal fecha. Tem queimaduras de primeiro grau nas pernas e abdómen, onde também tem de segundo e terceiro, na cara são de segundo grau e nos braços de terceiro. Foram dezenas as vezes que foi ao bloco para lavagens. Hoje, é Leonor que o ajuda a limpar as feridas.

Zeca, tal como Vítor Neves e Carlos Guerreiro, nunca pensaram ficar tão queimados. Lembram-se de nunca terem entrado em contacto com as chamas, mas o calor era tanto que lhes arrancou a roupa e a pele naquela tarde de Junho. Tinham ido resgatar uma madeira da empresa de Zeca. Vítor, o empregado, Carlos, o cunhado, que por ter carta foi ajudá-los a trazer uma carrinha.

Este destino pesa nos ombros de Zeca. Ainda está a tentar espiar o sentimento de culpa, quando não a tem. “As minhas primeiras palavras para eles foi a de pedir desculpa por ter tido o acidente”, conta. Mas como poderá ter culpa se foi empurrado pelo vento? “Veio um vento fora do normal, com cinzas, tudo e mais alguma coisa e eu deixei de ver a estrada. De dia tornou-se noite ali de um momento para o outro. Abrandei e senti um pneu rebentar, a carrinha fugiu para o lado direito e eu bati numa barreira”.

Depois de terem sido socorridos pelo sogro de Zeca, Manuel David, e pelo adjunto dos bombeiros de Pedrógão, Sérgio Lourenço, que andavam a fazer o reconhecimento do perímetro do incêndio, foram fugindo ao fogo numa carrinha de comando até serem resgatados pelo INEM em Figueiró dos Vinhos, mas por uma unha negra. O fogo estava a chegar à helipista e mal tiveram tempo de procurar veias para os entubarem. Carlos ficou pior, esteve em Espanha a ser tratado e agora voltou para casa por conta própria. Zeca e Vítor conseguiram ir sempre a falar. E a falar não se desalentaram.

Meses depois, em Agosto, saiu do hospital directo à unidade de cuidados continuados da Santa Casa da Misericórdia de Pedrógão Grande, onde esteve até ao dia 20 de Fevereiro deste ano. Foi pela primeira vez a casa em Outubro, no dia das eleições e decidiu ir ao café. Patrícia, preocupada, perguntou-lhe se não se importava que o vissem assim de cara ferida. “Disse-lhe que se alguém se sentisse incomodado que tinha de sair, que era as pessoas que se tinham de habituar a mim e não eu a elas”.

Fotogaleria: o antes e o depois

Pelo caminho perdeu 25kg, e perdeu movimentos (quando a pele se encolheu) que agora tenta reganhar com a fisioterapia intensiva que faz no Idealmed, Centro Hospitalar de Coimbra, três vezes por semana. Ninguém o foi ver, nem responsáveis políticos, nem muitos dos conhecidos. Poucos o ajudaram. Teve o apoio da Associação Portuguesa de Seguros e agora é a Fidelidade que lhe paga os tratamentos e assegura o ordenado. Além disso, recebeu a baixa e o apoio da Segurança Social e alguns donativos dos bombeiros de Pedrógão. Não tem carrinha para a empresa voltar a trabalhar e não a consegue ter, apesar de já ter pedido ajuda à Câmara de Pedrógão, com quem têm divergências por causa de um terreno.

Indemnizações? Ainda não a tem. No máximo, receberá 25 mil euros de indemnização do Estado. Pouco, defende Dina Duarte, activista que pertenceu à Associação de Familiares das Vítimas do Incêndios de Pedrógão Grande. “Os feridos têm de ter um tratamento muito cuidado. É muito mau quando a vida de uma pessoa são 70 mil euros base e a vida de uma pessoa que continua viva são 25 mil euros no máximo. Um jovem, um pai de família, alguém que tem filhos para criar. Não é digno, não acho que seja correcto”.

E o dinheiro faz falta para os tratamentos de Zeca. Precisou de ajuda para pagar a unidade de cuidados continuados e do fato especial, de compressão da pele, que é obrigado a usar. “Tenho luvas, mangas, no sítio das queimaduras, umas calças completas para tapar as queimaduras e alisar a pele. Durante a noite uso uma máscara para baixar a pele”. Tem de o usar o mais tempo possível. Acorda todos os dias para um novo mundo a olhar pelos dois buracos daquela peça de elástico. A sua vida será assim por dois a três anos, pelo menos.

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José Carlos Santos fotografado em sua casa, em Pedrógão Grande a usar o fato especial de compressão da pele. Apenas usa a máscara à noite para dormir Adriano Miranda

Esta é apenas uma das novas exigências que lhe custa. Leonor sabe que há mais. Uma delas é não poder jogar paintball, vício bom que tinha todos os fins de semana. “A tua prenda ainda demora uns mesitos a chegar”, não se aguentou a contar ao pai na véspera de aniversário, a 13 de Abril. Sempre atenta, tinha ouvido que Zeca precisava de umas cotoveleiras para proteger a pele se levasse com uma bala de tinta e convenceu a mãe a mandar vir da internet.

Um mês depois chegam ao campo da “Força Psi” da Figueira da Foz, o grupo de paintball onde Zeca jogava. “Ficas ali atrás a tirar caricas”, lança uma das amigas, que sabe que Zeca, Patrícia e Leonor só lá vão pelo convívio. Zeca tem medo de se aleijar e fica só a ver. “Podias ir jogar. Não sei qual é o problema que tu tens. Tens braçadeiras, tens o fato. Aquilo não te vai atingir mesmo na pele. Não achas?”, insiste Leonor.

Esteve a roer na vontade de brincar aos tiros de tinta. Cede. Leonor ajuda-o a vestir-se, a proteger cada centímetro de pele. “Ninguém atira no Zeca”. Aviso dado, tiro dado. Foi só lá dentro matar o bichinho e voltar um pouco à normalidade. Ilusão, diz. Tal como aquela que teve quando ao fim de uma semana estava a comer sozinho. Não se quer iludir porque sabe que tudo demora muito tempo. O relógio anda agora muito mais devagar.

Leonor fica orgulhosa do feito do pai. Aos oito anos ninguém merecia ser obrigada a ter esta força, esta clarividência. Cresceu rápido neste último ano. Sabe tudo o que se passa à sua volta e o papel que desempenha na família. “Quando ele acordou achei que era o mesmo. Acho que ele veio por causa de mim”. Veio, Leonor. E veio para ficar.

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