Pedro Mexia, o conselheiro de Marcelo que não votou em Marcelo
Comentador e comendador, Pedro Mexia não abdicou de nada para integrar a equipa do novo Presidente da República. Por enquanto mantém em segredo as ideias que já tem. Acredita que Marcelo será um Presidente mais interessado do que Cavaco Silva pela área da cultura.
Sentámo-nos à mesa do costume. Mandámos vir o habitual. O bife do Lacerda – a “bifanga”, como costuma dizer o Pedro – já nos alimentou muitas conversas. Era aqui que nos reuníamos ao almoço, depois de gravado o Governo Sombra. A mudança de horário, agora que o programa é feito em directo, matou esse saboroso hábito. A circunstância desta vez é outra e Pedro Mexia, ao contrário do que é costume, aparece de fato e gravata, a farda da sua nova função. Esteve reunido com a equipa de conselheiros de Marcelo. Pedro Mexia, de 43 anos, não esconde o espanto por ter sido convidado pelo Presidente em quem não votou. Mas percebe-se que está satisfeito com a possibilidade de ter uma palavra a dizer na definição do que vai ser o próximo mandato presidencial na área da cultura. Ambições políticas, não tem. Ficou vacinado numa breve passagem pelo CDS. O escritor de direita que a esquerda gosta de ouvir defende o papel do Estado na política cultural, vai passar a ter o telefone sempre ligado para atender Marcelo a qualquer hora do dia ou da noite e garante que, ao contrário de Vasco Graça Moura, autor de uma Balada do Bom Cavaquista, não escreverá uma balada do bom marcelista.
Como é que fazemos isto: trato-te por sr. comendador ou por sr. consultor cultural?
São ambos títulos com os quais tenho dificuldade em me relacionar. Podes escolher. Qualquer um deles me soa estranho.
Pode-se concluir que estás em alta em Belém...
Exacto [risos]. O que é bastante curioso, porque nunca tive nenhuma ligação nem ao novo Presidente nem ao Presidente cessante.
É público, aliás, que não votaste em nenhum dos dois...
Sim. É uma situação insólita, para dizer o mínimo. Tanto num caso como no outro. A condecoração ainda o foi mais [foi condecorado oficial da Ordem Militar de Sant'iago da Espada por Cavaco Silva]. Este convite, apesar de tudo, supõe uma espécie de capacidade para exercer um cargo, enquanto a outra supunha qualquer coisa que não sei bem o que é [risos]. Serviços relevantes à pátria? Nunca entendi.
Era essa a expressão oficial?
Não. Alguém me disse que era isso, não sei se era a justificação oficial. Mas foi realmente insólito. Claro que aceitei porque era uma condecoração do Estado português, e não havia razão nenhuma para a recusar.
Hesitaste nalguma das situações?
Não. Entendi a condecoração como sendo do Estado português, independentemente da pessoa que a atribuía. Neste caso, hesitei no sentido em que queria perceber exactamente do que se tratava, naturalmente.
Já percebeste?
Mais ou menos. O suficiente para aceitar.
Achas que Marcelo te convidou sabendo que não votaste nele?
Não faço ideia. Imagino que ele não veja o Governo Sombra. Mas, em abono da verdade, sou um eleitor esquisito. Nunca votei em ninguém nas presidenciais; ou votei em branco ou abstive-me. As eleições uninominais tornam-me especialmente gourmet em termos eleitorais. Se havia alguém que se podia preocupar com isso era ele.
O facto de nunca teres votado em presidenciais tem alguma coisa a ver com as simpatias monárquicas que já confessaste publicamente?
Não. As minhas simpatias monárquicas são teóricas.
“Monárquico por tradição familiar”, escreveste uma vez.
Sim, é isso. A questão monárquica não é uma questão que esteja em cima da mesa em Portugal. Não há um movimento social que reclame a instauração da monarquia. Simpatizo com algumas monarquias, com alguns monarcas.
Mas continuas a ser sensível ao argumentário monárquico?
Sou sensível a algumas partes do argumentário.
Não vês incompatibilidade entre trabalhar para o Presidente da República e simpatizar com a monarquia?
Nunca fui um militante monárquico, tenho uma simpatia genérica. O meu lado anglófilo, aí, também conta muito.
Acabaste por votar em branco nas presidenciais...
Sim.
O que é que estava em causa no teu voto?
A personalidade de Marcelo Rebelo de Sousa tem muitas facetas, e eu aprecio mais umas do que outras, como é normal em qualquer pessoa. Tinha um pouco a dúvida, enquanto eleitor, sobre que Presidente ele viria a ser. Até pelo estilo de campanha que fez, que foi muito positivo do ponto de vista eleitoral, para ele, mas, como ele próprio reconhece, muito frustrante para os eleitores do seu espaço político. No fundo, foram esses os prós e os contras. Mas nunca esteve em causa votar noutro candidato. Esteve em causa votar nele ou não. Acabei por não o fazer.
No Governo Sombra chamaste a Marcelo Rebelo de Sousa “um elitista populista”. Era um elogio ou uma crítica?
Num certo sentido social, classista, Marcelo Rebelo de Sousa faz parte das elites, é um facto. Mas, como se viu pela campanha, é uma pessoa que não só está à vontade em qualquer meio social dito popular, como tem um gosto especial nisso. Gosta de aparecer, como já vimos por diversas vezes, com o cachecol da selecção. Coisas desse género.
Vias-te a aceitar um convite idêntico vindo de Cavaco Silva?
Não posso responder dessa maneira. Posso dizer que o facto de ser Marcelo a convidar-me ajudou, por uma razão: porque é uma pessoa para quem a cultura é natural. Independentemente do que se diga sobre a relação dele com aquelas leituras que apresentava na televisão, é uma pessoa que lê livros, que vai a livrarias, vai a concertos. Tem uma relação com o mundo da cultura. Se essa relação não existisse ou fosse deficitária, seria mais estranho para mim ser conselheiro cultural de alguém sem apetência cultural.
Era o caso de Cavaco Silva?
Toda a gente reconhece que a formação de Cavaco é mais técnica do que humanística.
O que é que te vês a fazer, em concreto, no papel de consultor cultural do Presidente da República?
Há uma parte que é conhecida e que tem a ver com a agenda do Presidente, no sentido em que há muitas solicitações, muitos acontecimentos, muitos espectáculos. Há uma dimensão de aconselhar o que vale mais a pena, não por razões de gosto pessoal, necessariamente, mas pela relevância do acontecimento.
Quando o Presidente achar relevante um encontro de ranchos folclóricos...
O Presidente aceitará ou não qualquer conselho que eu lhe der e fará o que quiser sem precisar do meu conselho. Não há sequer esse choque.
Estás preparado para ter o telefone ligado 24 horas por dia?
Sim, claro. São conhecidos os horários sui generis do Presidente.
Acreditas que Marcelo vai ser, em termos culturais, um Presidente mais interventivo do que outros, nomeadamente o anterior?
Diria mais interessado. Interventivo, quando se fala do Presidente, tem sempre conotações problemáticas. Acho que o Presidente está muito ciente de que, nessa como noutras áreas, a Presidência não substitui o Governo. Não cabe ao Presidente da República ter intervenções na área cultural que são da competência do Ministério da Cultura. Intervenção é uma palavra perigosa. Acho que ele tem interesse, apetência, gosto, e isso foi uma condição essencial para eu aceitar este desafio.
Vais ser tu a organizar a agenda cultural do Presidente?
Essa é uma dimensão óbvia porque há nisso uma dimensão de resposta a solicitações, a convites, a pedidos. Mas há uma outra dimensão que a Presidência da República pode ter, uma dimensão mais proactiva, como se diz agora. Não vou estar aqui a antecipar de que é que estou a falar, mas posso dizer que isso, para mim, é uma preocupação: que o meu papel não seja apenas o de dar resposta a convites, mas, pelo contrário, também o de propor coisas. Com a noção muito clara, no entanto, de que existe o Ministério da Cultura.
Olhando para o passado, recordo-me, por exemplo, das conferências intituladas O Balanço do Século, que Mário Soares organizou na Fundação Gulbenkian. Pode ser um modelo a seguir?
Parece-me um modelo muito positivo, o de ser a Presidência da República a patrocinar o debate.
Nessa altura, a Presidência patrocinou a vinda a Portugal de figuras como Karl Popper ou Vargas Llosa...
Exactamente. O conhecimento directo, o contacto directo com figuras importantes do pensamento, ou das artes, ou da literatura. Não quer dizer que seja esse o modelo escolhido, mas é um exemplo de uma atitude activa e não meramente reactiva. É uma actividade cultural emanada da Presidência por oposição a ir ou não, apenas, àquilo que aparece.
Há meios, na Presidência da República, para grandes iniciativas na área cultural?
Não sei ainda responder a essa pergunta.
Tens um orçamento?
É muito cedo para responder a isso. O que posso dizer é que muita da intervenção do Presidente da República passa por actos sem repercussão orçamental, como se diz agora. No sentido de que passa por visitas, chamadas de atenção, homenagens, coisas desse género. Há muitas coisas que se podem fazer, que são apenas da ordem de chamar a atenção para qualquer coisa que não está a ser devidamente reconhecida. O Presidente, sendo quem é, tendo o cargo que tem, pode contribuir para isso. Nem todas as iniciativas serão assim, mas uma parte muito significativa será dessa natureza.
Já pensaste em propostas concretas a apresentar ao Presidente Marcelo?
Já. Desde o primeiro momento em que falámos que pensei nisso, naturalmente. Imagina que o Presidente me pedia para pensar em coisas e não me ocorria coisa nenhuma, isso não deixaria antever um grande sucesso nas funções.
Mas já lhe apresentaste alguma proposta para testar a viabilidade das ideias que tens para a função?
Não, não nesse sentido. Não vou instrumentalizar o Presidente da República com uma espécie de test drive.
Imagina que ele te dizia: “Desculpe, mas não é nada disto que quero.”
Creio que, apesar de tudo, este convite, como os outros convites feitos pelo Presidente, não terá sido às cegas. Suponho que o prof. Marcelo conhece minimamente o percurso das pessoas, a opinião das pessoas. Até a sua personalidade. Seria estranho que depois, de repente, elas não fossem nada daquilo que ele estava a pensar. Não seria de uma pessoa perspicaz, e ele é uma pessoa muito perspicaz.
Não vais contar-me nenhuma dessas ideias em que pensaste?
Naturalmente que não [risos].
Nestes últimos anos, de que modo é que o processo da austeridade afectou a área da cultura?
Afectou-a grandemente. Por um lado, porque grande parte das actividades culturais não são auto-sustentáveis, e não é possível que o mercado as viabilize sozinho.
É nesse ponto que és de esquerda, ou pelo menos que dizes coisas que a esquerda gosta de ouvir...
Sou de esquerda no mesmo sentido em que um Malraux era de esquerda. O Malraux do De Gaulle, não o Malraux da China. Há uma tradição da direita – quer francesa, quer até inglesa – de considerar que uma nação também é civilizada por causa da sua cultura; de que a cultura tem necessidades económicas que não correspondem necessariamente à lei da oferta e da procura. Nesse sentido, o Estado tem um papel na cultura. Agora, também há outra dimensão: é que no esquema antropológico das coisas, digamos assim, a cultura não é um bem de primeira necessidade, comparada com a alimentação ou com a saúde.
Há quem reclame porque não se subsidia o preço das batatas mas subsidiam-se os bilhetes para a ópera...
Não se podem subsidiar as batatas porque vivemos num mercado em que já não há proteccionismo. Desse ponto de vista, é muito fácil argumentar duas coisas: em primeiro lugar, que a cultura não está no primeiro patamar das necessidades de sobrevivência; e, em segundo lugar, que há uma parte significativa das pessoas que não tem interesses culturais, portanto essas pessoas sentem-se num certo sentido dispensadas de se preocuparem com isso. Ora, eu sou peão e não estou isento de contribuir para as auto-estradas.
Mas também beneficias das auto-estradas se fores de autocarro...
Sim. Vou mais à boleia. Talvez este seja então um exemplo melhor: eu contribuo para a iluminação pública de uma cidade qualquer – não vou referir nenhuma em concreto – aonde nunca fui nem quero ir; acho bem que haja iluminação pública nessa cidade. Isso não me diz respeito a mim, e, no entanto, diz respeito ao todo nacional. Há uma lógica dos impostos que é diferente da lógica das taxas. A lógica dos impostos é que o dinheiro vai para um bolo para as necessidades básicas.
É pacífico para ti que o Estado contribua para a cultura enquanto necessidade básica...
É pacífico, mas gostava que as pessoas para quem isso não é pacífico o dissessem preto no branco. E honra seja feita, algumas dizem-no. Que, perante um cenário sem a intervenção do Estado, digam: “Então pronto, então não haverá ópera, cinema, teatro e bailado.” Uma pessoa que diz isso é um bárbaro.
O Vasco Pulido Valente diz que o Estado deve intervir apenas para preservar o património...
Mas o património é a parte em que toda a gente está de acordo.
Apenas...
Sim, há pessoas que acham que é só isso. Eu reconheço que há problemas na relação do Estado com a cultura, que há problemas de favoritismo, de funcionamento de júri, de política de gosto. Reconheço todas essas críticas. Mas do outro lado está a morte cultural. Sou defensor da biodiversidade cultural, e essa biodiversidade num país como Portugal só existe porque o Estado intervém. O cinema é um caso flagrante. Não havendo outra alternativa, a única alternativa é a alternativa Átila, o Huno. Acaba-se com isto. Acabou o bailado, acabou o cinema. Tudo bem, há pessoas que dizem isso. Fica-lhes bem assumir. Mas é arrepiante.
A acusação que se ouve, por vezes, de seres o tipo de direita que diz coisas que a esquerda gosta de ouvir, incomoda-te?
Depende. Se a esquerda gostar de ouvir que sou contra a pena de morte, por exemplo, ou que acho que o Serviço Nacional de Saúde deve existir, não me importo nada de ter coincidências com a esquerda nessa matéria. Noutros casos, o que acho é que há da minha parte uma espécie de preocupação em não ser sectário, o que algumas pessoas da esquerda – não é a esquerda – valorizam. Fico contente que elas valorizem isso.
Mas já foste bem mais veemente nas tuas intervenções ideológicas em público...
Já. Isso está ligado a duas coisas: a um período histórico – já lhe podemos chamar histórico – que foram os acontecimentos pós-11 de Setembro e a guerra do Iraque. O tom subiu muito nessa altura e eu acompanhei essa subida de tom. Depois houve um outro momento, que foi o dos anos da crise e do consulado de Sócrates, em que as pessoas começaram a estar em trincheiras, a ferro e fogo. A culpabilidade ou a inocência de pessoas acusadas, presas ou suspeitas, tinha de ser professada por razões ideológicas. Eu, aí, desliguei completamente.
Foi uma aprendizagem existencial?
Não. A minha aprendizagem existencial foi em coisas bem mais importantes do que o segredo de justiça.
Que memória tens de Marcelo Rebelo de Sousa como teu professor na Faculdade de Direito de Lisboa?
A mais imediata é a da pessoa que me estragou a caligrafia. A minha caligrafia sempre foi feia, é verdade, mas nas aulas do prof. Marcelo, ao tomar notas, o esforço de acompanhar tudo o que ele dizia – foi meu professor de Direito Administrativo – produziu uns gatafunhos na minha escrita que depois foram ficando. Era um professor espectacular. No sentido próprio de espectáculo. As pessoas gostavam de ir às aulas dele mesmo que não tivessem o menor interesse por Direito Administrativo.
Deu-te boa nota?
Tive uma nota relativamente boa. Não sei exactamente quanto, mas sei que estive entre os melhorzinhos da cadeira porque esses alunos tiveram de fazer uma apresentação oral. Essa apresentação era seguida de uma coisa fascinante: um veredicto que ele fazia sobre a qualidade do trabalho. Mas um veredicto misturado com uma espécie de caracterização psicológica das pessoas à la minute. Pessoas que ele não conhecia. No meu caso, já não sei reproduzir exactamente o que ele disse. Mas ele, que só me conhecia de me ver nas aulas, foi quase assustador em termos de perspicácia, pela maneira como me definiu, muito mais do que ao meu trabalho. Já não me lembro exactamente qual era o tema, mas seria qualquer coisa sobre o acto administrativo; um desses temas fascinantes. E ele procedeu a uma análise da minha personalidade, da minha postura pública a apresentar o trabalho. Foi um dos momentos em que, para mim, ficou mais clara aquela particular inteligência que lhe é reconhecida.
Lembras-te de algum aspecto dessa caracterização que ele fez a teu respeito?
Lembro-me de uma coisa. Eu tinha de defender uma posição e um outro colega tinha de defender uma posição oposta. E lembro-me que ele me caracterizou dizendo que eu tinha um especial gosto por defender a minha posição em vez de atacar a posição alheia, numa espécie de catenaccio jurídico. Que eu era uma personalidade defensiva. O que é muito bem observado. Isto revela um tipo particular de inteligência, por oposição à inteligência apenas da erudição. Há nele uma capacidade de ler uma pessoa que, evidentemente, é muito útil na política.
Vais continuar a fazer tudo o que fazias até aqui?
Em termos de tempo, provavelmente não. Mas em termos das actividades essenciais, sim. Continuarei a escrever em jornais e vou continuar também num determinado programa em que participo [risos]. Isso foram duas questões prévias porque são coisas que faço há muito tempo, que gosto de fazer, e que queria continuar a fazer. E não vejo razão nenhuma, nem num caso nem no outro, para suspender ou terminar essas actividades.
Pôs-se-te em alguma das circunstâncias uma questão de compatibilidade de funções?
É evidente que o Governo Sombra, sendo um programa de comentário político, pode levantar alguns problemas de incompatibilidade. É evidente que eu, sendo consultor do Presidente da República, não terei o mesmo à-vontade para falar do Presidente da República que tenho sobre outra figura qualquer da vida pública. Mas também não me parece que as minhas intervenções, em nenhum momento do Governo Sombra, sejam conhecidas por serem incendiárias, ou qualquer coisa do género. Se fosse esse o caso, se tivesse de mudar de personalidade, de não dizer as coisas que me apetece dizer, isso seria problemático. Não antevejo que seja esse o caso.
Não temes que o cargo te roube alguma liberdade de actuação em termos públicos?
Vai ocupar tempo, isso sim. Mas a minha liberdade nunca esteve em causa. Pareceu-me, aliás, que o prof. Marcelo era muito sensível a isso, à dimensão de as pessoas continuarem a fazerem o que fazem, pelo menos nos casos em que isso era possível.
Falaram disso?
Falámos, claro.
Quando Marcelo estiver na berlinda, como é que te vês a gerir essa situação no Governo Sombra?
Com uma declaração de interesses, para quem esteja distraído, para quem tenha passado os últimos anos no Brasil. Só é problemático no sentido em que as pessoas me ouvirão com um pé atrás. Mas não creio que a situação seja muito diferente da de outras figuras públicas que fazem comentário e que têm, por exemplo, ligações político-partidárias, que eu não tenho, ou que têm outras proximidades – que são da Maçonaria, por exemplo – e em relação às quais nós, nalguns casos, fazemos o devido desconto. Conto com isso neste assunto específico, mas é um assunto específico. Prometo que não comentarei os temas culturais da Presidência da República. Sobre isso não direi uma palavra.
Mas estás preparado para uma certa maledicência inevitável?
Estou sempre preparado para a maledicência.
Como é que, em geral, te relacionas com ela?
Já conheço o repertório. Durante uns anos li tudo e queria saber tudo, até conhecer o repertório. Agora já conheço, já não vale a pena. Claro que as coisas me chegam sempre aos ouvidos, mas não ando a ler o que escrevem sobre mim.
Não te "googlas" de vez em quando?
Vou ver coisas na imprensa, às vezes nalguns sites ou em blogues, mas não vou ver as redes sociais. Deus me livre. Jamais!
Vês este teu novo papel como um cargo político?
Tendo em conta que o Presidente da República é um político, aconselhar o Presidente da República é um cargo político. Mas não é político no sentido de ser partidário, com certeza. Por outro lado, também não é, e tentarei que não seja, ideológico. As escolhas e a agenda do Presidente da República, nomeadamente em matéria cultural, não se devem pautar em nenhum caso por uma qualquer proximidade ideológica com as pessoas, as instituições, os artistas. Nesse sentido, não é político.
Imagino que esteja fora do teu horizonte qualquer intervenção na política activa...
Está, bastante. Já me conheço relativamente bem: não tenho nenhum interesse na vida político-partidária. Não há intervenção activa fora dos partidos, e não me estou a ver na vida partidária. Tudo o que me chega da vida partidária é tão desanimador que não tenho nenhuma vontade. Se é esse o caminho para intervir na política, então esse caminho não me interessa.
Nunca foste militante?
Fui militante do CDS por algum tempo. Militante, no sentido de filiado. Dizer militante dá uma ideia de intervenção na vida do partido que eu nunca tive.
Não ias às reuniões?
Não. O que aconteceu é que fui muito influenciado pel’O Independente em vários aspectos, não só políticos. Na altura conheci o Paulo Portas, quando ele chegou a líder do CDS, e ele, basicamente, deu-me uma ficha para eu me inscrever e eu, sensibilizado, assim fiz. Nunca tive nenhuma intervenção no CDS. Tornei-me, aliás, bastante crítico de alguns aspectos e de alguns momentos do CDS. Em determinada altura fizeram-me ver que isso não era compatível com o facto de ter cartão e eu imediatamente o devolvi.
Mostraram-te a porta de saída?
Não formularia assim. Mostraram-me que era incompatível ter liberdade opinativa e ser filiado. E então, quando um dos vectores em causa é a liberdade, é sempre por esse que eu opto. Ainda por cima não abdicava de nada de particularmente valioso.
Lembras-te do que é que pôs em causa essa tua relação com o CDS?
Houve duas ou três intervenções do CDS que me desagradaram bastante.
Foi por coisas que escreveste?
Penso que sim. Não me lembro exactamente qual foi o episódio que desencadeou a situação, mas desagradou-me, por exemplo, a associação que era feita entre a imigração e a criminalidade. Lembro-me que me desagradou, noutra altura, uma certa dimensão confessional do partido, que não me parece especialmente benéfica. Houve algumas coisas desse género.
Isso foi nos anos 90?
Não. Já havia blogues. Foi na altura do Governo de Santana Lopes.
Guardas, apesar disso, alguma boa memória dessa experiência?
Não chegou a ser bem uma experiência. Tinha um cartão em casa. Evidentemente, o CDS era e continua a ser o partido em que voto, em geral, nas legislativas. Nas outras eleições nem sempre. Nesse sentido, isso não mudou. Mas todos os ecos que fui tendo da vida partidária — directos, indirectos — são praticamente todos negativos. Por tudo o que sei e tudo o que ouço, tenho uma visão muito negativa da vida partidária.
Pelo carreirismo?
Tudo isso.
É curioso que, apesar disso, não tenhas perdido o interesse pela actividade e pela actualidade política.
Tenho muito interesse por política. Muitíssimo. Quer do ponto de vista da actualidade, quer do ponto de vista, até, teórico, como leitor. Uma coisa não se confunde com a outra.
Mas essa análise negativa tornou-te só um céptico, ou já um cínico?
Não exactamente um cínico. Acho que o meu cepticismo se aprofundou ao ver tantas pessoas metidas na política transformarem-se em cínicos. Acho que a melhor descrição é essa. Vi muitos não-cínicos tornarem-se cínicos porque estão na política partidária. Isso desagrada-me bastante.
É uma inevitabilidade?
Depende de muitas coisas: da personalidade, do carácter. Mas há uma propensão grande para isso porque há muitas dimensões em jogo: de vaidade, de poder, de ascensão. Algumas delas respeitáveis, aliás. Querer ter sucesso na vida não é crime. Mas não me parece que sejam os partidos as estruturas que conseguem isso da forma mais sã para o colectivo.
O poder corrompe?
Sim, corrompe o carácter. Não tem de ser necessariamente o poder partidário, político. Pode ser o poder de um porteiro de discoteca. Ter pessoas que dependem da nossa decisão dá uma sensação de que se pode fazer e desfazer a vida das outras pessoas. E, em alguns casos, pode. Isso facilmente sobe à cabeça de quem está nessas situações. Não mais na política do que noutras actividades. Há pessoas que sofrem isso por se tornarem ricas, por exemplo. Conhecemos aquele caso típico do casal que comprou um bilhete de lotaria em conjunto, e que depois, quando ganhou a taluda, se separou porque de repente o interesse monetário pelo prémio era maior do que o amor entre eles. O poder, como a riqueza, é um desafio. E eu sou sensível a isso, vou armado de algumas cautelas quanto a isso.
Vigias-te a esse respeito?
Na verdade, tirando a minha passagem pela Cinemateca — onde, de resto, fui durante um tempo subdirector, e durante outro tempo director interino, mas mesmo considerando essa passagem —, nunca tive poder no sentido de ter pessoas que dependiam da minha decisão. Como, aliás, não vou ter.
Mas tens poder no sentido de que tens uma tribuna pública, por exemplo...
Isso sim. Mas desse poder gosto porque não é coercivo. Ninguém vai comprar um livro porque eu digo que é muito bom.
Não?
Não. Ou melhor, não é bem isso que eu quero dizer. Ninguém é obrigado a comprar um livro porque eu digo que é muito bom. Enquanto se uma pessoa é, já nem digo ministro das Finanças, mas mesmo de outras pastas, aquilo que ela decide obriga as pessoas na sua vida. É um poder de outra natureza. O poder hierárquico, o poder de despedir alguém. Isso é mais corrosivo do que ter simplesmente uma opinião que pode, ou não, angariar leitores, pode ou não ser partilhada, seguida.
Estás a ver-te a escrever versos em Belém?
Desde que não sejam versos sobre Belém... Eu não vou estar em Belém fisicamente, vou ser um consultor externo. Mas não me vejo a escrever poesia política, ou poesia de corte.
O Vasco Graça Moura escreveu a Balada do Bom Cavaquista...
Há muitas pessoas que o fazem, e pessoas que o fazem bem, mas eu não tenho interesse nenhum nisso.
Não vais escrever a balada do bom marcelista...
Não, não. Isso até seria um pouco ambíguo. Os meus temas, na poesia, são quase todos estritamente pessoais. Não há risco nenhum de isso acontecer.