Uma ideia para Portugal

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Aldeia de Gimonde, Bragança NELSON GARRIDO

Pedimos ao autor de Identificação de um País que nos contasse o que está para vir. Um desafio ao historiador sobre o que nós podemos esperar de Portugal depois de olharmos para o passado. O país será sempre o mesmo?Por José Mattoso

História e previsão

A História só sabe o que aconteceu. Ignora o futuro e o condicional. Não lhe podem pedir previsões, nem mesmo aquelas que nos séculos XIX e XX se deduziam das pretensas leis do devir histórico, como as propostas pelo materialismo dialéctico. Se algum historiador ousa falar do que está para vir, só pode fazê-lo em nome da sabedoria que lhe vem de conhecer o passado. Na verdade, é a sabedoria que lhe faz dizer: "nada há de novo debaixo do Sol" (Ecles. 1.9). Lampedusa, n"O Leopardo diz o mesmo, aliando à sabedoria um certo cinismo: "Para que as coisas permaneçam iguais, tudo deve mudar". Na verdade, não podemos cultivar ilusões. O mundo será sempre o mesmo: com hegemonia americana, europeia ou chinesa, com globalização ou sem ela, com revoluções ou governos estáveis, com guerras ou com a paz, teremos sempre de contar com o sofrimento, a desigualdade social, a luta pela vida, a morte.

Neste sentido, se me perguntam o que espero para Portugal nos próximos anos, devolveria a pergunta aos economistas e sociólogos. Sem ilusões, é claro. Em tempos de crise, como a actual, as suas previsões podem traduzir probabilidades, mas também a intenção oculta de influenciar a opinião pública para tranquilizar os investidores, beneficiar o funcionamento normal da máquina financeira ou favorecer os sectores políticos a que estão ligados. Raramente revelarão informações seguras, ou seja, estatísticas exactas, completas e significativas. A manipulação estatística é uma arma poderosa. O seu potencial político retira às previsões económicas e sociais a exacta credibilidade. A política é a arte de neutralizar os prognósticos. Além disso, as previsões "científicas" ignoram o inesperado, como aconteceu no 11 de Setembro.

Identidade nacional

É verdade que a História também serve para verificar recorrências, algumas delas relacionadas com os fenómenos da identidade. A continuidade da ocupação humana num certo território e da associação dos seus habitantes sob a orientação do mesmo poder político durante séculos pode propiciar a emergência de fenómenos análogos; mesmo que sejam determinados por estruturas de tempo longo, isto é, de alteração lenta, e não constitutivos da Nação, não podemos deixar de os observar atentamente.

Que se pode, então, esperar do futuro próximo de Portugal em virtude de factores identitários ou estruturais? Esquecendo os numerosos retratos míticos de Portugal e dos portugueses produzidos desde o tempo de Camões, voltemos aos indicadores sociais e económicos. Notemos a diferença entre o Portugal atlântico e o interior, o densamente povoado e o desertificado, o citadino e o que resta do rural.

Noutro registo, o Portugal dos ricos, separado por um largo fosso do dos pobres (ou antes, dos fracos, dos desempregados), dos crentes e dos não crentes, dos instruídos e dos ignorantes. Características maiores: uma minoria capaz de profissionalização e uma maioria que, mesmo com diplomas, não consegue sustentar uma produção tecnologicamente competitiva e rentável. Um país feito de bocados que nada consegue unir. Acontece não só nas estruturas socioeconómicas, mas também na produção cultural, cuja "norma" é a "descontinuidade de saltos geracionais" (Eduardo Lourenço, citado por Miguel Real), e a esterilidade institucional das obras geniais (Fernão Lopes, Nuno Gonçalves, Vieira, Pessoa, Amadeu, Antero...). Daí o "irrealismo", acentuado por Eduardo Lourenço, tanto do discurso patriótico alimentado pela epopeia dos Descobrimentos e assumido pelo Estado Novo, como do pessimismo decadentista dos Vencidos da Vida, ambos resultantes do complexo de inferioridade nacional.

Desencanto

Daí os protestos dos poetas: "Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo...

meu remorso / meu remorso de todos nós" (Alexandre O"Neill); "O país que tinha já de si pequeno / fizeram-no pequeno para mim / os donos das pessoas e das terras / os vendilhões das almas no templo do mundo" (Ruy Belo); "Portugal / país defunto talvez unto para nações vivas / Portugal meu país de desistentes" (Ruy Belo); "Meu país desgraçado! / Por que fatal engano? Que malévolos crimes / teus direitos de berço violaram?" (Sebastião da Gama); "Este país te mata lentamente. / País que tu chamaste e não responde. / País que tu nomeias e não nasce." (Sophia de Mello Breyner Andresen); "Pátria magra - meu corpo figurado / Meu pobre Portugal de pele e osso! / Nada na tua imagem se alterou: / A casca e o caroço / dum sonho que mirrou" (Miguel Torga).

É verdade que estas palavras estão datadas. Foram escritas antes do 25 de Abril. É verdade que em Portugal muita coisa mudou. António Barreto insiste nisso e convenceu-nos a todos num programa televisivo largamente difundido (2007): "A verdade é que mudámos muito. Os portugueses hoje são muito diferentes do que eram há trinta anos... nascem, crescem, aprendem a ler, trabalham, amam, alimentam-se, reproduzem-se [...] sofrem e morrem de modo diferente". Sem dúvida.

Mas depois dos entusiasmos criados pelas expectativas da integração na Europa, os portugueses descobrem que os níveis de vida, a educação elementar, a cultura, as capacidades técnicas, a competitividade económica, o funcionamento das instituições, o desempenho da justiça, a eficiência do regulamento jurídico, continuam tão longe dos níveis da Europa como sempre foram. O "atraso" português é uma dura realidade. A crise económica agravou-o e, segundo parece, continuará, nos próximos anos, a agravá-lo.

Saber durar

Mas o "atraso" é um conceito relativo. Só tem sentido por relação com outra coisa - a Europa ou os EUA, obviamente. Ora, uma das descobertas mais simples e mais irrecusáveis do após 25 de Abril é que Portugal é um país como os outros. Sem missão providencial, sem Quinto Império, sem realizações espectaculares, sem lugar especial no mundo, apesar dos Descobrimentos. Com alguns génios, reais, mas não muito numerosos. Não é provável que para ele se desloque o centro do mundo, ou venha a desempenhar um papel de relevo na confrontação das civilizações. Quer isto dizer que devemos viver "habitualmente" como aconselhava Salazar? De certo modo, sim, porque somos como qualquer outro país. Mas, ao contrário do que, na sua intenção totalitária e paternalista ele queria dizer, para fazermos da mediocridade e da submissão um ideal de vida, a aceitação do quotidiano pode também significar a libertação tanto dos complexos de inferioridade como da paranóia colectiva. Associado ao "saber durar" que o aguentou durante tanto tempo na sua cadeira, pode, e creio que deve, ser tomado não como programa pessoal sustentado a qualquer preço, mas como convite à resistência quotidiana, à inteligência na busca de soluções possíveis, à busca da solidariedade social, de partilha do bom e do mau, de honestidade e persistência no trabalho, de aceitação da responsabilidade, de sabedoria.

Em suma, "saber durar" vivendo intensamente o dia-a-dia, sem ilusões nem desfalecimento. Se temos problemas, em vez de nos lamentarmos e acusar os outros, procuremos resolvê-los. O que os nossos antepassados nos ensinam, é isso mesmo - não proclamar glórias quinhentistas que não são nossas, mas de quem as viveu; não declinar responsabilidades inerentes à vida em sociedade; não lamentar vícios nacionais, mas combatê-los; não cultivar utopias enganadoras ou esperanças vãs, mas ser realista e pragmático. Por mais moralista que este discurso pareça (ou seja!), não creio que possamos dispensar-nos de pensar assim, nesta época de dúvidas tão radicais acerca do nosso futuro como as que resultam da globalização, da comunicação em "tempo real", do domínio da técnica sobre a biologia, da facilidade com que se compra o armamento, da irresponsabilidade com que se agride a natureza. A ideologia resultante do domínio da técnica propicia a apropriação difusa do poder em proveito próprio e o esquecimento das fronteiras éticas. Será possível evitar uma catástrofe universal sem restituir aos preceitos éticos o seu carácter sagrado?

O lugar dos justos

Haverá ainda lugar, no mundo de hoje, para uma concepção humanista da existência? Seja qual for o sentido que demos ao conceito, o que quero dizer é que não acredito numa ideia para Portugal senão baseada no respeito pelo Homem e pela sua dignidade. O domínio da técnica ameaça o Homem porque dá o poder mas não garante o seu bom uso. Podemos falar em esperança; mas se não sabemos o que a justifica, a sua invocação é estéril. Como podemos, no meio da crise, saber se não é apenas mais uma mentira? Só conheço uma resposta: aquela que se deduz da "conversa" entre Javé e Abraão antes da destruição de Sodoma e Gomorra: "Será que vais exterminar ao mesmo tempo, o justo e o culpado? Talvez haja cinquenta justos na cidade: matá-los-ás a todos? Não perdoarás à cidade por causa dos cinquenta justos que nela podem existir?" (Génesis., 18.23). Só Deus sabe que proporção de "justos" no conjunto de habitantes de cada cidade é suficiente para ela subsistir. Pelos vistos, Javé até se contentava com dez. Mas ninguém sabe.

O que a vida me tem ensinado é que existem mais "justos" neste mundo do que se pode saber através dos jornais. Há muitas formas de santidade oculta, nem que seja por meio do sofrimento assumido, do apaziguamento, da noção do dever. A religião católica aliada ao individualismo atrofiou o conceito de "justo". A história do Génesis propõe que se creia no efeito da acção do "justo" sobre a comunidade a que pertence em virtude do princípio de solidariedade. Os "justos" são a porção viva e sã, mas escondida, da comunidade a que pertencem. Garantem a sua capacidade de regeneração. O fundamento da esperança no futuro é o reconhecimento dos "justos" que nos rodeiam, seja qual for o meio em que vivem e o apoio que somos capazes de lhes dar na sua luta pela "justiça". Talvez isso sirva de antídoto contra a desilusão que nos causam os poderosos da finança, da política ou do espectáculo.

Historiador

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